SANGUE NAS FOLHAS DE CAFÉ

Fernanda Teixeira Ribeiro oferece café forte em "Cantagalo"

Opressão e racismo no Alto Paranaíba no início do século 20 marcam romance premiado em Portugal e lançado no Brasil pela mesma editora de "Torto arado"

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Da infância em São Gotardo até a escrita no bairro paulistano de Vila Mariana, a história narrada pela mineira Fernanda Teixeira Ribeiro em “Cantagalo” tem gosto de café. Amargo, intenso, forte; por vezes indigesto, raramente adocicado, quase sempre encorpado. Com protagonismo feminino e ambientado em uma fazenda na virada para o século 20, é o livro de estreia da jornalista nascida em Uberaba em 1984 e que viveu na região do Alto Paranaíba antes de retornar à cidade do Triângulo e, posteriormente, se mudar para São Paulo para a formação universitária. Com quase 300 páginas, “Cantagalo” é um romance com “alma de folhetim e fôlego contemporâneo”, aponta a professora Stefania Chiarelli, em resenha para o Pensar.

“Creio que me atraem histórias que falam de costumes e como os indivíduos se desenvolvem, se relacionam, transitam e manifestam suas características próprias dentro (e apesar) de códigos sociais definidos. Os ‘romanções’ que me marcaram quase sempre giram em torno de personagens que fazem movimentos inusitados dentro desses códigos”, afirma Fernanda Teixeira Ribeiro ao Estado de Minas, ao apontar títulos como “Tenda dos milagres”, de Jorge Amado, e “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, como decisivos na sua formação literária.

Apresentado pela autora como “um romance de família, inserido em um contexto social”, “Cantagalo” tem no principal eixo narrativo as consequências e cicatrizes de um casamento arranjado entre a herdeira de uma fazenda de café e o filho de uma escravizada. O livro começou a nascer com os causos que Fernanda escutava quando era criança. “Venho de uma família longeva e convivi com muita gente idosa, como o meu bisavô”, conta. Entre as histórias, ela guardou uma particularmente “intrigante”. Envolvia a matança de um galo e uma casa amaldiçoada. “Foi o embrião do romance”, revela – e a descrição do andamento de uma rinha (“Os dois se olham, aproximam afasta aproxima, o malhado salta e o sangue espirra na terra já vermelha das outras brigas...”) – é uma das agens mais impressionantes do livro.

Escrito em duas fases e ao longo de três anos (“Achar o tom foi o mais difícil”, reconhece a autora), “Cantagalo” ficou pronto no início de 2023. E o que uma autora iniciante, com formação científica, poderia fazer com um romance? “Pensei em autopublicação. Quase fui por esse caminho até que decidi inscrever os originais em diversos concursos literários e ver o que acontecia”, lembra. A boa notícia veio de Portugal, com a conquista do Prêmio de Revelação Literária União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa-CMLisboa. Ela recebeu 3 mil euros e o lançamento em terras lusitanas, pela Editora Guerra e Paz, antes da edição brasileira.

“A premiação queimou uma etapa”, reconhece a autora. Sua estreia chega às livrarias pela editora paulistana Todavia, a mesma de “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, igualmente premiado em Portugal antes de se tornar best seller em nosso país. “Acho que há conexões entre os dois livros, como o fato de terem famílias como protagonistas e o Itamar ser geógrafo. Ambos temos formação de pesquisa”, lembra Fernanda, formada em jornalismo científico pela USP e com doutorado em Neurociências. “Para mim, a ciência e a literatura são parecidas.”

Com lançamentos em BH no final deste mês e no início de junho, “Cantagalo” esconde uma história de opressão, racismo e abuso sexual entre as “serras penteadas de pés de café” e as lavouras do Alto Paranaíba. “Não adianta: quando eu sento para escrever, na minha cabeça só vem as coisas de Minas”, reconhece a autora. Entre os itens mineiros, a bebida-símbolo do estado é o combustível tanto para a escrita quanto para as recordações utilizadas como matéria-prima para a narrativa. “Lembro de botar o café para secar no quintal em São Gotardo, as conversas que escutava nas fazendas...”, conta a escritora. Ela parece contrariar, com o seu livro, a afirmação do pai de uma das personagens: “Tão lindas quanto se acabam rápido, as flores do café não duram nada”. As flores podem ser efêmeras, mas os frutos são atemporais. É tempo de colheita no cafezal imaginado por Fernanda Teixeira Ribeiro.

O que levou para o livro de sua vivência em São Gotardo?
Acho que a ideia de que muito pode acontecer dentro de um microcosmo aparentemente . Jane Austen escreveu que três ou quatro famílias vizinhas são suficientes para se criar uma boa história. Porque está tudo ali, convenções, conflito, desejos. Era um cotidiano rico em vivência: as festas religiosas, vizinhos, parentes, um contato próximo com a vida rural. Um linguajar característico, ouvido principalmente de pessoas mais velhas, com expressões e cadência próprias.

Qual a fase mais desafiadora da escrita de “Cantagalo”?
O início. Foi muito difícil. A história era um mistério para mim. Escrevi um primeiro capítulo, na época, sobre uma visita de família, que acontecia na sala de um casarão, e ali se apresentaram quase todos os protagonistas e o “conflito” do livro. Feito esse capítulo, eu não sabia o que fazer com essas pessoas. As soluções foram vindo aos poucos. Primeiro aprofundei nas relações de um núcleo familiar, depois nas de outro. Ia avançando e voltando. Até que a história engrenou e o processo ficou muito prazeroso, comecei a ter curiosidade com que ia aparecer no dia seguinte. O enredo foi se fazendo. Ao longo do livro todo, tive que voltar muito ao começo para refazer, porque a coerência foi surgindo durante a escrita.

Final do século 19, início do século 20. O que mais a fascina nessa época da história do mundo e do Brasil? E o que você não sabia e, ao pesquisar para o livro, incluiu na narrativa?
Foi um período de profundas mudanças. Pós-abolição, começo da República, o ciclo do ouro dando lugar pro café, a teoria genética de Mendel, a teoria da evolução de Darwin, o surgimento da psicanálise na Europa. Tudo isso acontecendo e o Brasil, Minas, tendo na retaguarda (e diante) de si toda uma estrutura social arcaica, de forma social escravista. Algo que descobri em pesquisa, que acho que foi fundamental pro enredo, foi a transição da capital mineira de Ouro Preto para BH, em 1897. Daí surgiu a ideia de ambientar uma parte do livro em Ouro Preto, em torno de uma elite de “capital velha”, e de estabelecer um trânsito entre o Cantagalo (eu diria que ele fica no Alto Paranaíba) e Ouro Preto e Mariana, tendo em vista os seminários e colégios tradicionais ali. De pesquisa também veio a ideia de colocar uma freira, uma cientista, testando experimentos similares aos de Mendel, em segredo.

Você tem doutorado em neurociências. Quais as semelhanças e conexões que consegue estabelecer entre a ciência e a literatura?
Pesquisar e escrever são processos longos, baseados em tentativa e erro. Você parte de um projeto, um esboço inicial, e à medida que vai avançando percebe falhas, lacunas enormes que não tinha previsto. Aí ou você larga o projeto ou vai buscar soluções. É uma frustração constante, um processo nada confortável. Mas é muito gratificante quando se encontra um caminho. Na escrita do livro, às vezes eu pensava “pronto, esse personagem é assim”, por exemplo, mas com o tempo eu percebia que não, o modo de falar, agir, ainda não condizia com o que a história pedia. Aí precisei dar alguns os para trás, reformular, buscar que fizesse sentido. Na pesquisa é assim também, você tem uma ideia, mas vários problemas surgem na execução. Eu acho que tanto pesquisa como escrita envolvem estar aberto a mudanças e ter um olhar de curiosidade, não de rejeição, para o que ainda não está encaixando.

Ao se referir aos seus livros brasileiros preferidos, você afirma que gosta de “romanções”. O que mais aprecia nos grandes romances e o que tentou reproduzir deles em “Cantagalo”?
Creio que me atraem histórias que falam de costumes e como os indivíduos se desenvolvem, se relacionam, transitam e manifestam suas características próprias dentro (e apesar) de códigos sociais definidos. “Romanções” que me marcaram quase sempre giram em torno de personagens que fazem movimentos inusitados dentro desses códigos.

O protagonismo de “Cantagalo” é feminino. Quem são essas mulheres que você criou?
São mulheres que viveram dentro das limitações impostas a mulheres naquela época e começaram a vislumbrar alguma possibilidade de mudança, que viria apenas décadas depois. Foi um exercício interessante construir pessoas pensantes, que tentam expressar sua personalidade, sua vocação, em um universo com possibilidades muito mais restritas que as de hoje. Eu definiria várias delas como mulheres que tentam ir além do que está posto.

Em “Cantagalo” estão presentes visões pouco alentadoras do casamento e da maternidade. O primeiro é uma espécie de prisão para as mulheres, e a segunda surge por vezes como oportunidade de “limpar o sangue” ou transmitir a herança. Poderia comentar como foi essa elaboração?
Essa perspectiva é atrelada à época, um período em que as possibilidades da mulher ainda eram vinculadas a um destino praticamente único: o casamento e, consequentemente, gerar descendência. Fazer um bom casamento era questão de origem e de dinheiro. Quis colocar como conflito central um casamento que levasse ao extremo esses dois fatores. Então, como é uma história que se a no pós-abolição, veio a ideia de fazer um casamento inter-racial, motivado por valores como branqueamento de descendência, de um lado, e preservação da propriedade, de outro.

A viúva Praxedes afirma que “os homens variam muito pouco entre si” e seu corpo surge como “monjolo corrompido e envenenado”. Ela se refere a um comportamento sexual, que aparece em variações em torno de estupro, abuso e pedofilia. Quais os desafios de trabalhar estes temas?
No caso dessa personagem, por exemplo, as relações sexuais se deram dentro de uma estrutura em que o corpo dela estava subjugado a um poder (pai, depois marido), daí a noção dessa personagem de que “os homens variam muito pouco entre si”. Quanto a “um monjolo, quando pesado de sujeira não se enche de água boa”, “o corpo corrompido de antemão, como os rios envenenados de mercúrio”, acho que essas metáforas vêm de uma perspectiva neuro de que experiências traumáticas deixam marcas fisiológicas — mas isso não se configura em um destino incontornável. Acho, então, que o desafio foi buscar não cair em um clichê de psicologização do personagem, isso é, reduzir uma pessoa unicamente a seu histórico de abuso, de violência. Ela carrega marcas, claro, mas um ser humano é sempre algo além de. Busquei um contraponto, aliás, com uma das filhas da própria personagem, que também vive uma experiência de abuso, mas, por ampliação da visão de mundo, personalidade, desejo de mudança, consegue antever possibilidades de relacionamento menos rígidas que a mãe. Ao longo do processo, troquei ideias com um grande amigo psicólogo e psicanalista, especializado em abuso infantil. É uma questão que mescla muitos sentimentos e uma experiência do tipo vai impactar cada pessoa de uma maneira diferente.

Um dos destaques do romance é o retrato da mentalidade racista de uma certa elite brasileira. Como foi encontrar a dicção para expressar esse ado que persiste entre nós?
Eu não quis marcar o racismo através de expressões sabidamente racistas, corriqueiras na época. Tentei levar essa dinâmica para as ações, para os pensamentos dos personagens sobre situações e as pessoas com quem se relacionam. Eu optei por deixar o leitor inferir o porquê de determinados tratamentos ou ações.

Você vive desde a universidade em São Paulo. O que mais sente falta de Minas?
Eu vou bastante a Minas, em Uberaba especialmente, onde vivem meus pais. Gosto dos sotaques, que variam muito no estado, das formas de tratamento. Das profundas diferenças geográficas, que fazem parecer um país. Talvez sinta falta de uma forma menos apressada de viver, em comparação a São Paulo.

Na sua leitura, como definiria “Cantagalo”?
É um romance de família, inserido em um contexto social. É sobre forças que nos colocam em determinadas posições na vida, mas também sobre os raios de ação que vamos ampliando a partir das possibilidades que temos e que vamos conquistando. Sobre como o ontem se projeta no hoje e também o contrário.

Colaborou Stefania Chiarelli

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“Cantagalo”
De Fernanda Teixeira Ribeiro
Todavia Editora
288 páginas
R$ 84,90
Lançamentos em BH no dia 31, às 11h, na Livraria da Rua, com mediação do jornalista João Barile, e no dia 7/6, às 16h, na Livraria do Belas, com a livreira Ingrid Melo Silva.

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