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AML discute diásporas da língua portuguesa

Encontro na Academia Mineira de Letras analisa o futuro de um idioma fraturado pela geografia, cultura e história

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Jacyntho Lins Brandão - Especial para o EM

Quando, há mais de vinte anos, cheguei como professor visitante na Universidade de Aveiro, em Portugal, tinha a preocupação urgente de saber como de praxe um professor se dirigia aos alunos. Para minha surpresa, o jovem colega a quem coube me receber me esclareceu ser normal tratá-los por “vocês”. Não em nome da informalidade que reina no Brasil, mas porque é assim que, por lá, alguém mais importante se dirige ao menos importante, o que se aplica também à hierarquia da sala de aula. Então, sendo chamado de “professor doutor”, eu retribuía com “vocês”. Para um brasileiro nem sempre é fácil dominar os meandros da etiqueta portuguesa, os exemplos podendo multiplicar-se: ao chegar certa vez a Coimbra, ainda na estação dos “comboios”, uma colega gentilmente me indagou: “O Jacyntho fez boa viagem?”, torneio nem tanto formal nem tanto íntimo, como éramos àquela altura, o que tornava inadequado tanto “o senhor fez boa viagem?” quanto “fizeste boa viagem?”

Imes assim não se dão quando se trata de falar um idioma estrangeiro – como estrangeiro –, afetando apenas falantes da mesma língua. É o que se expressa no paradoxo de Jacques Derrida em “O monolinguismo do outro”: “Não se fala jamais senão uma única língua”, mas “Não se fala jamais uma única língua”. As duas situações não em exclusão, mas em relação que opõe não o próprio (ou o “correto”) ao outro (o “errado”), conformando antes uma rede de alteridades em que só reconheço minha língua no espelho da língua do outro que a tem tanto quanto a tenho eu. Se com relação ao português do Brasil e de Portugal isso se faz ver de imediato nível das palavras (“sorvete” x “gelado”), interfere também na pragmática, na sintaxe e na semântica (assim, por exemplo, nem sempre percebemos que, em Portugal, “perceber” = “entender”).

É visando à reflexão sobre os variados aspectos da alteridade linguística que a Academia Mineira de Letras e a Associação Internacional de Lusitanistas promovem, de 8 a 10 deste mês, o colóquio “Diásporas da Língua Portuguesa”, tendo como convidados Conceição Evaristo, Augusto Santos Silva, Paulo Henriques Britto, Rogério Tavares, Nazareth Fonseca, Luísa Buarque, Sabrina Sedlmayer, Márcia Duarte, Júnia Furtado, Bruna Franchetto e Makely Ka. De um lado, o objetivo é a comemoração do dia da Língua Portuguesa, de outro, a problematização do que ela é. A diáspora sendo fruto do processo de colonização que levou o português do hemisfério norte ao sul e do ocidente ao oriente, qual estatuto se pode hoje a ele atribuir de uma perspectiva descolonial? Qual seu ado, qual seu presente e o como se projeta seu devir? Os adjetivos que definem suas modalidades, quando falamos em português brasileiro, ou angolano ou moçambicano, algum dia se libertarão para designar o que é próprio de espaços geográficos, culturais e mentais diferenciados?

Ao eleger tal enfoque, sublinha-se como o futuro de uma língua está justamente nisto: sua diáspora. O português, afinal, é nada mais que um dos frutos da diáspora do latim, a qual produziu mais de uma dezena de rebentos do espaço que vai de Península Ibérica à Romênia. Espalhado em proporção muito mais ampla, o português é hoje, no mundo, a sétima língua materna mais falada, sobretudo pelo aporte de mais de 200 milhões de usuários brasileiros.

Ressaltar a diáspora implica também considerar a coabitação com outras línguas, sejam asiáticas, como nos casos de Macau e Timor, sejam especialmente as africanas e ameríndias. De novo, não se trata só do vocabulário, mas de impactos mais abrangentes. A tão marcante diferença de pronúncia entre Brasil e Portugal provavelmente decorreria da convivência do português, entre nós, com línguas do grupo banto, como defende a linguista Yeda Pessoa de Castro. Enquanto na Europa as vogais átonas aram por um processo de emudecimento, o mesmo não se deu por aqui pela relevância que as vogais apresentam em línguas como o quimbundo, em que a sílaba termina sempre em vogal (quimbundo, por exemplo, se dizendo assim: qui-mbu-ndo).

A tudo isso se acrescentam as literaturas. Não seria errado entender que é nelas que mais se dão a ver agens e conexões de alteridades. Antes de tudo porque implicam investimento no devir, no sentido de que a literatura (pelo menos a boa literatura) sabe recolher nos usos comuns aquilo que faz ar ao estatuto de arte, expandindo as fronteiras de léxico e sintaxe – usos sempre em mudança e com alta carga de inovação poética, na dependência de se aprender a ouvir e sentir. É justamente aí que se expressa de todo o paradoxo derridiano: a nossa “literatura de língua portuguesa”, falando senão uma única língua, não fala jamais uma única língua.

Em resumo, o que se tem de mais expressivo, por isso mesmo, é o espetáculo da diversidade que, dos usos linguísticos, se espraia também pelo diaspórico mar de histórias e experiências disperso por quatro continentes. 

JACYNTHO LINS BRANDÃO é professor emérito da UFMG e presidente da Academia Mineira de Letras (AML)

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1º Colóquio Internacional Diásporas da Língua Portuguesa

Com Augusto Ernesto Santos Silva, Paulo Henriques Britto, Conceição Evaristo, Júnia Ferreira Furtado, Bruna Franchetto, Luísa Buarque, entre outros convidados, e mediações de Jacyntho Lins Brandão, Sandra Goulart, Carolina Anglada, Marcos Alexandre, Ana Gomes, Fábio Bonfim Duarte e Marcos Alexandre. Da próxima quinta-feira, dia 8, a 10/05 na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466, Centro, BH) e no canal da AML no YouTube.

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