"Nunca vi tantos 'Vidas secas' de má qualidade", diz neto de Graciliano
Ricardo Ramos Filho afirma que a entrada em domínio público compromete edições das obras clássicas do escritor alagoano
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Siga noVocê vem de uma linhagem de escritores (seu bisavô Sebastião escrevia, seu avô Graciliano foi um dos maiores escritores do país e seu pai, Ricardo Ramos, foi um autor premiado). Rodrigo, o protagonista de “Toda poeira da calçada”, diz: “Não escrevo por gostar, nem busco prazer quando o faço. Nada tem a ver como escolha. Seria adequado encarar o ofício como espécie de maldição”. Escrever o primeiro romance foi tão difícil, foi uma “maldição”, a exemplo de Rodrigo? Isso porque ele parece ser seu alter ego em um romance de autoficção.
Parece que já ficou decidido para quem lê a obra: Rodrigo seria o meu alter ego. De certa forma, é mesmo. Procuro colocar no texto universo conhecido, próximo do meu, ser o mais fiel possível a ele. Mas há o Rodrigo, o Ricardo. Não é um romance de memórias. Autoficção? Vá lá! É sempre difícil separar fantasia e realidade. Para quem escreve, para o leitor também. Falar em maldição é um certo exagero. Demorei cinco anos escrevendo “Toda poeira na calçada”.
Cheguei a crer na impossibilidade de terminá-lo. Pareceu-me difícil. Romance é um gênero exigente, cobra mais do escritor. Pertencer a uma família de escritores nunca foi fácil. No início tentei fugir, comecei tarde, publiquei meu primeiro texto aos trinta e oito anos. Preocupava-me com comparações, elas seriam inevitáveis. Para um iniciante, degrau quase intransponível. Talvez esteja aí a quase praga. Sempre precisaria falar também de Graciliano e Ricardo Ramos.
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Mas hoje, um senhor, mais de setenta nas costas, já me acostumei. Li tudo do Velho Graça e do meu pai. Eles, obviamente, são referências muito presentes. Existem ecos deles em tudo o que escrevo, como de outros grandes escritores lidos. A gente sempre reflete nossas leituras, elas nos formam. Então ficou bem mais tranquilo. É cada um em seu nicho.
Consegui, depois de tanto tempo, autorizar-me a escrever um romance. Tudo o que mais desejo é que seja lido. E o melhor, preciso confessar, é que “Toda poeira da calçada” tem me dado alegrias. O retorno dos leitores tem sido muito positivo.
Rodrigo Ferreira sofre a angústia do ócio de um aposentado, paradoxalmente, por ter mais tempo para curtir a vida e o casamento, mas não tem atividades produtivas. Em certo momento, ele afirma: “A gente a mais tempo infeliz do que de bem com a vida”. E também: “Perdemos a capacidade de estar sentado sem fazer nada e isso é irritante demais. Já não se vive completamente, o ócio nos angustia.” Então, vem a pandemia de Covid e joga todo mundo de vez na infelicidade e na solidão, principalmente as pessoas mais velhas. Qual lição você tirou dessa terrível realidade?
Aprendi que preciso ser produtivo. Não serei aquele velhinho que terminará a vida pescando, vendo televisão, sentado vendo o tempo ar. Solidão e ócio são para mim coisas muito próximas. Hoje, aposentado, talvez trabalhe mais do que quando atuava no universo corporativo.
Tem a ver com me sentir vivo. Invento coisas, procuro ser criativo, busco, inclusive, complementar meu orçamento. Nossas aposentadorias geralmente não permitem grande conforto. Eu preciso do contato com as pessoas que o trabalho me oferece. Neste sentido entendo bem o Rodrigo. Tenho implicâncias com o fazer nada que beiram o misticismo. Parar é para mim, de certa maneira, morrer.
A obra de Graciliano caiu em domínio público em 2024, 70 anos após a morte dele. Desde então, inúmeras edições de editoras variadas estão chegando ao mercado. A que você atribui o interesse frequente pelas obras dele? Além do talento literário, seria o senso de justiça social, o chamado romance social?
Graciliano escreveu seus romances mais importantes na década de trinta. Sua obra, embora escrita há tanto tempo, continua atual. Infelizmente, o Brasil mudou muito pouco. Toda a denúncia social que fez em seu texto engajado, político, embora nunca panfletário, manté-se intacta.
O drama dos retirantes de “Vidas secas”, a violência do fazendeiro déspota de “S.Bernardo”, o agronegócio repleto de Paulos Honórios, a tragédia psicológica de “Angústia”, há um Luís da Silva em cada esquina representando nosso país agrário e oligárquico, tudo isso permanece vivo. Tais características fazem de Graciliano um autor que tem mercado.
Embora a editora Record, por exemplo, publique toda a sua obra, respeitando o autor alagoano com seriedade, muitas editoras, frequentemente sem o cuidado desejado, aproveitam para vender livros. Puro comércio! E colocam nas prateleiras as obras mais conhecidas.
Visando lucro, apenas lucro. Nunca vi tanto “Vidas secas” de má qualidade como vejo agora. É o problema do domínio público, que de público, por sinal, nada tem. Cair em domínio público não tornou os livros de Graciliano mais baratos.
“Desisti, faz muito, de intentar um perfil”, diz Ricardo Ramos na biografia “Graciliano: retrato fragmentado”. Tanto que o livro, como o próprio título diz, mostra a vida de Graciliano em fragmentos. Você não chegou a conhecer o seu avô, nasceu um ano após a morte dele, mas teve muitas referências familiares e literárias, inclusive do seu pai. Hoje, com o olhar distante no tempo, que perfil você faz de Graciliano e de Ricardo Ramos?
Considero dois grandes da nossa literatura. Graciliano, Machado de Assis e Guimarães Rosa formam uma tríade imbatível. Considero os três maiores escritores brasileiros. Ricardo Ramos precisaria ser revisitado. Foi um contista irável, raro, figura entre os maiores do gênero em nosso idioma.
E não é opinião de neto e de filho. Estudei muito. Em determinado momento de minha vida fui me preparar, fiz mestrado e doutorado na USP em literatura, lá debrucei-me sobre a obra do Velho Graça, li os maiores críticos literários. Os dois figuram como referências, são citados, têm o respeito dos especialistas.
Na biografia “Graciliano: retrato fragmentado”, Ricardo Ramos diz acreditar que “Angústia” era o livro preferido de Graciliano. Qual teria sido o livro de Graciliano preferido de Ricardo? E qual o livro do seu avô que você prefere e por qual motivo?
Aí fica fácil, por haver unanimidade. Também considero ser o “Angústia” o preferido do Velho Graça, e sei, por ouvir meu pai declarar várias vezes, que “Angústia” também era o preferido dele. Talvez, por influência dos dois, seja também o meu eleito. Acho sempre muito difícil escolher uma obra de Graciliano como a mais representativa. Estamos escolhendo em um universo onde figuram: “Caetés”, “S. Bernardo”, “Vidas secas”, “Angústia”, “Infância”, “Memórias do cárcere”.
Não é fácil pescar apenas uma obra. Mas “Angústia” traz uma força como romance que possivelmente os outros não tragam tão presentes. Poucas vezes vi um escritor entrar tão profundamente no psicológico de uma personagem. Os delírios de Luís da Silva, suas frustrações, ódios, medos, impressionam pelo realismo.
Marina, Julião Tavares, a trama, os conflitos, tudo está muito bem delineado. Obra-prima! Faria uma outra escolha, mostrando toda a dificuldade em pinçar apenas um livro. Gosto também muito de “Infância”. Entre “Angústia” e “Infância” meu coração balança. Conhecer o menino Graciliano foi importante para que eu pudesse escrever literatura para crianças.