Minas Gerais não está alheia à polarização que atravessa o debate legislativo sobre os direitos da população LGBTQIAPN+ no Brasil. Levantamento feito pelo Estado de Minas com as proposições apresentadas desde 2019 revela que, nas três esferas legislativas - Câmara dos Deputados, Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) -, a atuação de parlamentares do estado reflete tanto avanços significativos em pautas progressistas quanto tentativas de impor retrocessos.

Na Câmara dos Deputados, a bancada federal mineira apresenta, até aqui, uma tendência majoritária de propostas voltadas à ampliação de garantias. Desde 2019, dentre os 18 projetos legislativos com participação de deputados federais do estado, 72% são favoráveis à agenda LGBTQIAPN+, ao o que 28% se alinham a iniciativas de natureza restritiva. Até o momento, nenhum parlamentar mineiro apresentou proposta sobre o tema em 2025.

As proposições conservadoras concentram-se, sobretudo, em medidas voltadas à proibição de conteúdos sobre diversidade sexual e de gênero no ambiente escolar; à limitação de políticas públicas voltadas à população trans; e à proibição de tratamentos de transição de gênero para menores. Já os projetos de viés progressista buscam garantir o uso do nome social, ampliar o o à saúde, tipificar como crime práticas discriminatórias e consolidar o arcabouço legal de proteção à população LGBTQIAPN+. Chama atenção, contudo, a movimentação conservadora no sentido de não apenas frear novos avanços, mas também revogar direitos mínimos já assegurados.

ALMG e CMBH

No plano estadual, o cenário se revela mais volátil. Desde 2019, a Assembleia Legislativa mineira contabilizou 44 proposições relacionadas à temática LGBTQIAPN+. Dentre elas, 61% (27 projetos) são voltadas à proteção ou ampliação de direitos, enquanto o restante tangencia o discurso restritivo. Em 2023, primeiro ano da atual legislatura, ficou marcado o cenário mais polarizado durante o período analisado: quase metade das proposições protocoladas no ano (48%) apresentou teor conservador, mostrando o avanço de forças políticas contrárias à agenda de diversidade.

Grande parte dessas iniciativas legislativas estaduais espelha disputas travadas em âmbito federal. É recorrente, por exemplo, a apresentação de projetos que replicam propostas discutidas no Congresso, ainda que toquem em temas que extrapolam as competências dos estados, como diretrizes educacionais e políticas de saúde pública nacional. 

A maior parte dos projetos nas três casas legislativas ainda aguarda parecer de relatoria ou tramita em conjunto com outras proposições correlatas. Nessas circunstâncias, os projetos assumem caráter sobretudo simbólico, funcionando como instrumento de sinalização ideológica e mobilização de nichos eleitorais específicos.

Esse padrão de embate também se reproduz no Legislativo municipal. Na Câmara de Belo Horizonte, das 19 proposições apresentadas desde 2019 com foco na população LGBTQIAPN+, 63% (12 projetos) buscam garantir ou ampliar direitos, enquanto 37% (sete propostas) evidenciam uma agenda contrária, com teor excludente. O embate político em torno da temática, mesmo na escala local, mantém o traço polarizado e evidencia o uso estratégico do tema por diferentes espectros ideológicos.

Propostas

Para a realização do levantamento, a reportagem analisou proposições legislativas que mencionassem explicitamente a população LGBTQIAPN+, além de termos relacionados à identidade de gênero, orientação sexual, nome social, homofobia, transfobia, diversidade sexual e expressões recorrentes em iniciativas restritivas, como “ideologia de gênero” ou a defesa de definições de gênero estritamente baseadas no sexo biológico.

Na esteira das propostas restritivas, chama atenção o PL 3396/2020, apresentado pela então federal Alê Silva (à época no PSL). O projeto determina que o sexo biológico seja o único critério para a participação em competições esportivas. Embora a justificativa afirme que não se trata de uma medida excludente, o texto defende que a presença de mulheres trans nas disputas comprometeria a equidade, uma vez que características físicas associadas à testosterona confeririam vantagens permanentes, mesmo após a transição.

“O fato é que, se continuarmos a ignorar a tirania do politicamente correto e aplaudir a desigualdade em nome da igualdade, brevemente teremos seleções femininas compostas basicamente por transexuais”, afirma o texto, ao alegar que a inclusão de mulheres trans no esporte feminino pode, a médio e longo prazo, levar à exclusão de atletas cisgênero dessas competições. 

A proposta encontra respaldo também na Assembleia Legislativa, onde os deputados do Partido Liberal Bruno Engler (PL 1115/2019) e Caporezzo (PL 193/2023), além do ex-deputado Coronel Sandro (PL 1523/2020), protocolaram projetos semelhantes que reforçam a ideia de que o sexo biológico deve ser o único parâmetro para participação em competições esportivas. De forma paralela, na Câmara Municipal, a vereadora Flávia Borja apresentou o PL 535/2023, que já foi aprovado em primeiro turno e busca regulamentar essa questão no âmbito municipal.

ando ao campo educacional, os projetos de lei 4893/2020 e 772/2024, de autoria do ex-deputado federal Léo Motta (à época no PSL) e do deputado federal Felipe Saliba (PRD), respectivamente, seguem na mesma linha restritiva. Ambos buscam limitar o que denominam “ideologia de gênero” nas escolas, partindo da justificativa que é preciso proteger crianças contra uma suposta imposição ideológica promovida pelas escolas. Em sintonia, defendem que a formação moral e ética dos alunos deve ser uma atribuição exclusiva da família, reforçando o papel dos responsáveis na orientação dos valores dos menores.

A mesma linha de argumentação está presente em ao menos cinco projetos apresentados na Assembleia Legislativa, em sua maioria, de autoria de deputados do PL. Entre eles, o PL 2301/2020, de Coronel Sandro, que propõe a proibição de "novas formas de flexão de gênero" nas escolas; o PL 3249/2020, do deputado Charles Santos (Republicanos), que visa impedir a exposição de alunos a "políticas e propagandas sobre diversidade ou ideologia de gênero"; e o PL 196/2023, de Caporezzo, que proíbe a abordagem da chamada “ideologia de gênero” na rede estadual para menores de idade. 

Complementam esse conjunto os PLs 1161/2023, de Alê Portela (ex-deputada do PL), e 1325/2025, do Sargento Rodrigues (PL), que garantem aos pais o direito de proibir a participação dos filhos em atividades pedagógicas relacionadas a gênero. No plano municipal, o PL 597/2023, subscrito por parlamentares do campo conservador, segue a mesma lógica ao propor a proibição do uso de recursos públicos para eventos que promovam a “sexualização”, abrangendo também a divulgação da “ideologia de gênero” e o uso de “linguagem neutra” em materiais destinados ao público infantojuvenil.

Essa ênfase na proteção da infância também fundamenta o PL 4537/2023, de autoria do deputado federal Lincoln Portela (PL). O projeto propõe a criminalização dos tratamentos hormonais em menores de idade para modificar características sexuais por questões de identidade de gênero. 

O texto alerta para os possíveis “riscos” desses procedimentos, apontando prováveis efeitos irreversíveis, como “complicações cardiovasculares, ósseas e mentais”. Além disso, ressalta que menores não dispõem de capacidade plena para decisões acerca da identidade de gênero, justificando a necessidade de proteção contra tratamentos considerados prematuros.

Atualmente, a regulamentação do Conselho Federal de Medicina (CFM) já proíbe a cirurgia de redesignação de sexo para menores de idade. Ainda assim, propostas semelhantes foram apresentadas pelo deputado Eduardo Azevedo na Assembleia Legislativa, com o PL 3261/2025, e pelo vereador Vile na Câmara Municipal de Belo Horizonte, com o PL 32/2025, ambos integrantes do PL.

Garantias

Em meio ao avanço de pautas conservadoras nas casas legislativas, iniciativas progressistas também encontram espaço e protagonismo em Minas Gerais. Em diferentes esferas de poder, federal, estadual e municipal, parlamentares vêm articulando projetos que buscam tanto ampliar proteções legais quanto corrigir lacunas históricas no tratamento institucional dado às questões de identidade de gênero e orientação sexual.

Na Câmara dos Deputados, a deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) apresentou o PL 3627/2023, que pretende proibir as chamadas “terapias de conversão” de orientação sexual e identidade de gênero — práticas muitas vezes referidas como “cura gay” ou “cura trans”. A proposta sustenta que essas abordagens carecem de qualquer base científica, além de serem ineficazes e potencialmente danosas, provocando traumas psicológicos profundos e perpetuando a violência simbólica contra pessoas LGBTQIAPN+.

A preocupação também repercute em outras instâncias legislativas, como a Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Lá, o PL 1650/2023, de autoria da deputada estadual Bella Gonçalves (Psol), espelha a proposta federal ao vedar a prática e a divulgação de terapias de conversão no estado, reforçando a ideia de que a identidade de gênero e a orientação sexual não são patologias a serem "curadas". 

“É importante mencionar que tais práticas são, na espécie, formas de tortura psicológica e física das pessoas vítimas que, por vezes, são submetidas aos tratamentos mais degradantes e a todo tipo de violação dos seus direitos humanos. Tudo, com a pretensão de adaptar-se a um modelo social hegemônico quanto à orientação sexual, identidade ou expressão de gênero”, defende Bella. 

A defesa da dignidade também atravessa o tema do reconhecimento identitário em serviços públicos essenciais. Nessa esteira, Duda Salabert protocolou, na Câmara dos Deputados, o PL 2644/2023, que assegura o direito ao uso do nome social em toda a rede de saúde pública e privada. Segundo a proposição, a recusa em adotar o nome social de pessoas trans durante o atendimento médico agrava os processos de exclusão, alimenta o preconceito e compromete a efetividade do o à saúde.

Essa preocupação encontra eco em iniciativas locais. Na ALMG, tramitam os PLs 3215/2021, da deputada Beatriz Cerqueira (PT), e 1163/2023, apresentado por Lohanna (PV) e Macaé Evaristo (ex-deputada do PT, agora Ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania), voltados, respectivamente, à garantia do uso do nome social na istração pública estadual e na rede de ensino.

Já em Belo Horizonte, o PL 286/2022, de autoria do vereador Pedro Patrus (PT), trata do mesmo tema no âmbito dos registros municipais. “A aprovação do presente projeto de lei tende a abolir essa grave violação dos direitos humanos, pois, haverá de ser garantido o direito à identidade de gênero no âmbito do município de Belo Horizonte”, defende o parlamentar.

Outro eixo de atuação reside no esforço por aprimorar a legislação antidiscriminatória em vigor. É o que propõe o PL 2357/2024, da deputada Lohanna, ao incluir expressamente a identidade de gênero entre os fatores íveis de configurar discriminação punível em Minas Gerais. “A discriminação por identidade de gênero ocorre quando uma pessoa é tratada de forma injusta ou desigual com base na forma como ela se identifica em termos de gênero. Isso pode incluir recusa de emprego, assédio no local de trabalho, entre outras formas de discriminação”, afirma.

A matéria resgata, nesse ponto, uma discussão iniciada em 2020 pelo então deputado André Quintão (PT), com o PL 2316/2020, que propunha a ampliação das sanções por discriminação motivada por orientação sexual. Embora tenha recebido aval do Legislativo à época, o texto acabou vetado pelo governador Romeu Zema (Novo). A justificativa do Executivo girou em torno de três argumentos principais: a presença de conceitos vagos, a ausência de competência estadual para legislar sobre relações privadas e o risco de gerar insegurança jurídica. Segundo Zema, a proposta criava expectativas sociais que o Estado não teria condições de materializar, ampliando incertezas em vez de oferecer proteção eficaz à diversidade.

O debate também chegou à Câmara de Belo Horizonte, onde a então vereadora Duda Salabert apresentou o PL 162/2021, voltado à atualização da Lei Municipal nº 8.176/2001. A proposta visava ampliar o escopo da norma, que já previa penalidades a estabelecimentos que cometessem atos discriminatórios com base na orientação sexual, para também contemplar identidade de gênero e características sexuais. “Na época da proposição do projeto que se transformou na Lei 8.176/2001, era comum o uso do termo orientação sexual para abranger toda a população LGBT+ em sua diversidade. No entanto, à medida que o debate científico e jurídico sobre o tema tem se consolidado, verificamos que para oferecer uma proteção mais ampla e adequada é necessário abranger não apenas a orientação sexual, mas também a identidade de gênero e as características sexuais”, justifica a proposta.

Debate nas redes

A ascensão de propostas relacionadas às chamadas "pautas de costume" nos parlamentos estaduais e municipais reflete não apenas um fenômeno político, mas uma transformação mais ampla na dinâmica do debate público. Para o cientista político Paulo Ramirez, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), embora muitas dessas proposições esbarrem em inconstitucionalidades, sobretudo quando tratam de temas cuja regulação compete à União, elas cumprem, para muitos políticos, uma função estratégica: a de chamar atenção.

Segundo o especialista, o avanço de debates sobre diversidade e direitos sociais nas últimas décadas provocou reações de setores conservadores, que encontraram nas redes sociais um terreno fértil para ecoar suas bandeiras. "É por isso mesmo que nos últimos anos, principalmente com as redes sociais, à medida que essas temáticas foram se expandindo nas redes, elas acabaram ganhando contornos também dentro do legislativo", explica o professor. 

Ramirez observa que esse ciclo de retroalimentação entre redes sociais e arena institucional produziu efeitos ambíguos. Se, de um lado, intensificou a presença de parlamentares que atuam para frear avanços no campo da diversidade, de outro, contribuiu para impulsionar candidaturas progressistas ligadas justamente a essas pautas.

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O professor ressalta ainda que a diferença de escala entre os níveis federativo e local influencia o perfil das proposições. "Na Câmara dos Deputados existe um diálogo com uma quantidade de partidos, de políticos. Há pautas prioritárias colocadas à frente. Enquanto nos níveis estadual e municipal, é muito mais fácil atrair atenção com pautas polêmicas em nichos eleitorais", analisa. Para ele, a repercussão nacional de determinadas propostas controversas pode acabar sendo "um tiro no pé para muitos políticos", enquanto localmente, as discussões ficam mais restritas.

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