Por que escritoras ainda convivem com a ‘obrigação de ser genial’
Ensaísta Betina González cita Clarice e outras autoras para refletir sobre a necessidade de apropriação de um território antes monopolizado pelos homens
compartilhe
Siga noMaria Fernanda Vomero
Especial para o EM
Em um dos ensaios do ótimo “A obrigação de ser genial” (Bazar do Tempo), com tradução de Silvia Massimini Felix, a escritora argentina Betina González examina uma série de começos de romances, lidos como declarações estéticas das/dos romancistas. Antes, contudo, reflete sobre a dificuldade de tomar a palavra e se apropriar da violência da letra, considerando o início de qualquer texto como um atrevimento ou um ato de subversão diante da instituição ordenadora da língua. Aqui, Betina se refere ao impulso criador, ao instante primeiro da escrita, quando o desejo aterrissa na linguagem; mais adiante, contudo, em outros ensaios, aprofundará as nuances desse atrevimento quando aquela que escreve é uma mulher.
Pois bem, entre as obras cujos começos são analisados, está “A hora da estrela” (Rocco), de Clarice Lispector, e suas três propostas de início, segundo Betina: a “dedicatória do autor”; a sequência de subtítulos desdobrados do título e o primeiro parágrafo da narração de Rodrigo S. M. Os falsos inícios – diz a autora argentina – revelam uma história à revelia, a vida minúscula de Macabéa que se impõe, inenarrável. Clarice desobriga-se, assim, de estabelecer uma origem.
Há, no livro da autora brasileira, logo nas primeiras páginas, uma agem que me encanta: “Porque há o direito ao grito. Então eu grito”. Ao retomá-la agora, me dei conta de que essa citação parece resumir o eixo que orienta as reflexões desenvolvidas por Betina em “A obrigação de ser genial”: o direito ao grito, entendido como uma reinvindicação ao exercício inventivo, à escrita com emoção e ao segredo traduzido em criação literária, mas também – paradoxalmente – ao cultivo do silêncio, como uma espécie de resistência, sob a penumbra e longe dos holofotes, diante das diversas “conspirações” que regem a sociedade atualmente (a do barulho, a do espetáculo, a da autopromoção, a das fake news, a do politicamente correto etc.).
Leia Mais
O lugar da escrita
Betina González é autora de quatro romances, duas coletâneas de contos e algumas publicações ensaísticas. “A obrigação de ser genial” é o primeiro livro dela traduzido ao português (a editora Bazar do Tempo prevê lançar o romance “Olimpia”). Nos nove ensaios que compõem a obra, além do epílogo, Betina reflete tanto sobre os processos da escrita ficcional e os aspectos formais do romance e do conto quanto sobre as expectativas e demandas que rondam a escritora como ser no mundo.
Destaco, entre os textos que integram a segunda parte, aquele que dá título ao livro. Ecoa a pergunta: qual é o lugar da mulher que escreve? Durante muito tempo, comenta Betina mobilizando reflexões de autoras como Virginia Woolf, Margareth Atwood e Joanna Russ, esse lugar não foi o da escrita, dadas as interdições, práticas de invisibilização e julgamentos que pairavam sobre aquelas que se atreviam a fazer literatura.
aram-se séculos, mas a luta antiga ainda se faz presente no exercício das escritoras contemporâneas. O campo cultural continua a atribuir o ato de escrever ao “sujeito social por excelência”, historicamente visto como masculino. Assim, além de defender o gesto da escrita (“um jogo muito íntimo, íntimo demais para a luz do dia”, na definição da autora) e o próprio direito a exercê-lo, as mulheres que escrevem também precisam se apropriar desse sujeito – “e essa apropriação tem um alto custo.
É um deslocamento extremo”, afirma. É nessa situação de “deslocada” que se impõe a “obrigação de ser genial”: uma justificativa para a excepcionalidade de ser escritora (em combinação com outros papéis sociais esperados) em um cenário naturalmente ocupado e conduzido por homens. A própria Betina ainda é apresentada, em programas de entrevista, como “a primeira mulher a ganhar o prêmio Tusquets” – conquista de 2012, aliás, com seu segundo romance,“Las poseídas” [As possuídas].

Imaginar é preciso
Talvez um dos meus ensaios favoritos seja aquele em que, com reflexões argutas e pertinentes, a autora defende a imaginação nos trabalhos ficcionais contemporâneos. Nossa época tem privilegiado a literalidade, a mimese e a narrativa como confirmação do que se sabe ou acredita, numa aposta insistente nos “fatos reais”. Por isso, tanto o jogo quanto a fabulação vêm sendo preteridos, amainando o caráter disruptivo da ficção. “Inventar é um trabalho arriscado”, alerta Betina.
E, mais à frente, recorda: “Escrever ficção é o oposto de explicar”. Como leitora, não poderia estar mais de acordo. Parafraseando o poeta Manuel Bandeira, também estou farta do lirismo bem-comportado e do antilirismo das ficções que querem conduzir moralmente leitoras e leitores, isto é, direcionar o “sentido correto” da fruição e da compreensão do texto.
Os ensaios de “A obrigação de ser genial” surgiram como resultado do pensamento vivo, tentacular, gerado nas experiências da autora em oficinas de escrita, permeadas pelo diálogo constante e pela partilha de textos em processo. Não se apoiam em regras, pelo contrário; funcionam como uma aventura prazerosa pelas entranhas do texto. Aguçam a vontade de ler melhor, de escrever com mais consciência e, sobretudo, de dar vazão à inventividade, assumindo todo e qualquer risco. Um livro para ser lido, relido e comentado.
MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes (USP)
TRECHO
“No entanto, a ficção, como qualquer arte, não precisa de receitas, e uma prosa despojada (itindo que algo assim exista) não garante nada. Não é na ausência de adjetivos, imagens ou riscos que a escritora combate o perigo do sentimental. Quem opta pela prosa sem riscos se esquece desse impulso sombrio e avassalador que deveria ser a razão número um para narrar. Porque a autora que não arrisca o coração, não arrisca nada, por mais que se esforce por uma arquitetura textual elaborada.”
Betina González

“A obrigação de ser genial”
• De Betina González
• Tradução de Silvia Massimini Félix
• Bazar do Tempo
• 240 páginas
• R$ 74,00