
Humberto Werneck, domador de palavras, completa 80 anos
Autor de livros marcantes como ‘O desatino da rapaziada’, jornalista e escritor mineiro tem trajetória pautada pelas biografias, reportagens, crônicas e contos
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Especial para o EM
É do próprio Humberto Werneck a irresistível tese sobre suas origens, na divertidíssima crônica ‘Nós, descendentes do bacilo de Koch’: “Nosso avô Hugo, que era carioca, contraiu a doença aos 27 anos, em 1906, e depois de se tratar num sanatório suíço foi consolidar a cura nos ares então terapêuticos de Belo Horizonte, cidade criada na prancheta que não completara ainda nove anos de existência. O jovem médico lá ficou até morrer. Além de dois filhos nascidos no Rio de Janeiro, gerou mais onze no solo fértil de Minas. Tivesse ele permanecido no Rio e carioca teria sido toda a filharada. Um dos rebentos, também ele Hugo, só por milagre teria conhecido a setelagoana Wanda, e com ela tido onze mineirinhos, entre eles um camarada metido a escritor. Você poderia estar lendo um cronista menos chinfrim. Lamento. Não foi culpa minha, foi culpa do bacilo de Koch”.
Portando a lente com que aprendeu a enxergar o mundo - flagrando, no cotidiano, as coisas engraçadas, estranhas ou inusitadas - Humberto nunca se desfez, no entanto, das lembranças mais antigas e familiares, abrindo aos leitores a porta imaginária da sua casa com quintal e árvores, na Belo Horizonte dos anos cinquenta.
Um dos pioneiros na defesa do meio ambiente no Brasil, seu pai dele ganhou um carinhoso apelido, que rendeu até título de livro: o ‘espalhador de arinhos’. A mãe também apareceu em vários textos. Sobre os anteados (como o tetravô barão e o bisavô prefeito do Rio), os irmãos, avós, tios, primos e vizinhos, a infância, a juventude e os anos de formação em Belo Horizonte, o jornalista escreveu diversas vezes, sempre de forma espirituosa.
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Em sua obra, não faltam as histórias da escola “12 de dezembro”, de Dona Yvone Cabral e dona Carmosina Diniz, onde cursou o ensino fundamental; do Colégio Estadual, projetado por Niemeyer, no bairro de Lourdes; da Faculdade de Direito da UFMG, a ‘vetusta Casa de Afonso Pena’, onde concluiu a graduação, e do Minas Tênis Clube, que costumava frequentar com amigos como Jaime Prado Gouvêa, seu colega, mais tarde, no ‘Suplemento Literário’ para onde foi levado por Murilo Rubião e onde ficou entre 68 e 70, quando já estava claro que não seguiria a carreira jurídica.
A viagem com toda a família, na Kombi paterna, para testemunhar a inauguração de Brasília, em abril de 1960, é inesquecível: “Tudo em torno era vermelho (a poeira) e branco (as artes de Niemeyer). Candangos endomingados misturavam-se a fraques e cartolas numa inusitada democracia, sob um céu de aviões da Esquadrilha da Fumaça, enquanto um carro aberto eava Juscelino triunfante. Ninguém ali tinha dúvida, o Brasil ia dar certo. Com jeito de improviso, estava pronto. E aquilo era também comigo. Inebriado pela certeza de estar vivendo um momento histórico (...) senti confusamente a precisão de fazer alguma coisa, qualquer coisa, para estar à altura dele – e, em não menos histórica burrice, parei numa barraca, comprei um maço de cigarros e inaugurei um vício que haveria de arrastar por vinte anos”.
O episódio de sua prisão, em 3 de outubro de 66, durante a eata em protesto contra a eleição, naquele dia, do general Costa e Silva para a presidência da República, também gerou crônicas formidáveis. Depois de ar dezessete dias encarcerado com mais doze colegas, divididos em duas celas, foi finalmente solto por habeas corpus impetrado pelo advogado Sobral Pinto junto ao Superior Tribunal Militar.
Apaixonado pelas palavras, devorador de dicionários, leitor voraz, não demorou para que também começasse a escrever. Ganhador, duas vezes, dos concursos literários mensais então promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte, dedicou-se aos contos, sobretudo entre 65 e 70. O projeto era reuni-los num livro que já tinha até nome: “Primeiro movimento”, e que marcaria a sua estreia como ficcionista. A mudança de rota, em direção ao jornalismo, impediu a publicação do volume, que só foi editado em 2005, sob o título de Pequenos fantasmas”, como forma de tirar da gaveta os contos da juventude e de ‘livrar-se deles’.
A aprovação no concorrido processo de seleção para repórter do novo “Jornal da Tarde”, fundado por Mino Carta, levou Humberto a mudar-se para São Paulo, aos vinte e três anos. Pouco depois, ganhou bolsa do governo francês e foi estudar no ‘Institut Français de Presse’, entre 73 e 75, também atuando como correspondente do JT em Paris. De volta ao Brasil, trabalhou, ao longo da carreira, em “Veja”, no “Jornal da República”, na “Status”, na “Isto é”, no “Jornal do Brasil” (como editor dos cadernos ‘Ideias’ e ‘Ideias livros’), em “Elle”, na “Playboy”, na “Forbes Brasil”, e na curadoria do “Portal da Crônica Brasileira”, do Instituto Moreira Salles. Das crônicas publicadas semanalmente em “O Estado de S.Paulo” entre 2010 e 2020 surgiram coletâneas como “O espalhador de arinhos” (2010), “Esse inferno vai acabar” (2011) e “Sonhos rebobinados” (2014). Num balanço sobre a vida de jornalista, escreveu, com o bom humor conhecido: “Durante uns bons trinta anos, às vezes não tão bons assim, ei grande parte do meu tempo em redações de jornais e revistas. Deixaram em mim uma saudade moderada – saudade misto de alívio, como a que sentem os veteranos do OR, seguros de que a coisa não vai se repetir”.
Experiente na arte da edição, organizou, em livro, a obra poética de Hélio Pellegrino em “Minérios domados”, de 1993; os contos completos de Murilo Rubião, em três volumes lançados entre 2006 e 2007; as “Melhores crônicas”, de Ivan Ângelo, de 2007; “Bom dia para nascer”, as crônicas de Otto Lara Resende na ‘Folha de S.Paulo’, de 2011; “O Rio é tão longe – cartas a Fernando Sabino” (escritas por Otto), também de 2011, e “Melhores poemas”, de Paulo Mendes Campos, publicado em 2015.
Premiado por “O santo sujo – a vida de Jayme Ovalle”, de 2008, e já finalizando a biografia de Carlos Drummond de Andrade, Humberto ainda assinou “O pai dos burros – dicionário de lugares comuns e frases feitas”, de 2009, e o clássico “O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais”, de 1992. Atual editor-sênior da revista “Quatro cinco um”, especializada em livros, ocupa a cadeira de número cinco na Academia Mineira de Letras, onde tomou posse em dezembro de 2022, sendo recebido por Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, seu amigo desde a juventude.
“Capital afetivo”, mais uma de suas refinadas crônicas, ajuda a compreender um pouco da visão de mundo de Humberto Werneck, que agora chega aos oitenta anos: “Se você me permite a filosofada, desconfio que o sentido da vida se resume ao inconsequente prosseguimento da espécie, nessa absurda transportadora em cujo termo nos espera a queda no vazio. Resta saber o que faremos enquanto estamos por aqui. Se aceita a sugestão, aqui vai esta: o melhor investimento é nos afetos”.
*Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em Literatura e presidente emérito da Academia Mineira de Letras.
Palavras de Werneck
Trechos de livros do jornalista e escritor
“O desatino da rapaziada”
(Companhia das Letras, 2012, 213 páginas)
“Aqui se vai falar de escritores das Gerais e de sua vida dentro e em torno das redações de jornais e revistas. Aqui se vai falar, também, da propensão que têm esses escribas para fazer as malas, fincar barraca em outro canto - e, lá de fora, ficar olhando, cada vez mais obsessivamente, para sua terra natal.” (página 13)
“Com seus vinte anos, que coincidiam com os vinte do século, a cidade encarnava ao mesmo tempo a modernidade e a tradição. O atraso e a vanguarda. Emaranhava-se em contradições, em paradoxos. Pedro Nava dá notícia de cavalheiros disfarçando a cachacinha em xícaras de café, quando a bebiam nas mesas próximas à entrada do Bar do Ponto, à vista dos antes. Mas fala também da desenvoltura com que nas farmácias se podia comprar um ‘boneco’ de cocaína, ou do acintoso eio em carro aberto, pela Rua da Bahia, dos donos dos bordéis, para exibir à freguesia suas novas atrações”. (página 35)
“Como tudo o mais em Belo Horizonte, a vida daqueles moços se organizava em torno da rua da Bahia: iam ao cinema no Odeon, tentavam a sorte na casa lotérica de Giacomo Aluotto, bebiam no Estrela ou no Trianon, compravam livros na Francisco Alves e, de madrugada, sentavam-se para conversar à porta da Caixa Econômica, no cruzamento com a avenida Alvares Cabral. No Grande Hotel, em 1924, tiveram seu primeiro encontro com Mário e Oswald de Andrade, decisivo para a formação de todo o grupo”. (página 45)
“Com os escritores mais velhos, eram suaves e gratificantes as relações dos jovens da década de 40, fossem eles comunistas ou católicos. Ao contrário do que tantas vezes acontece, a geração mais nova não precisou hostilizar a precedente para abrir espaço. Era enorme sua iração pelos veteranos (...)”. (página 129)
“O pai dos burros - Dicionário de lugares comuns e frases feitas”
(Arquipélago, 2009, 216 páginas)
“A necessidade de que cada palavra, esse precário instrumento de comunicação, chegue o mais perto possível daquilo que se quer dizer. Se escrever vale a pena, deve ser para enunciar algo que se pretende novo - e me parece um contrassenso, sobretudo no jornalismo, tentar ar o novo com linguagem velha.” (página 10)
“O que se quer com este livro é apenas recomendar desconfiança diante de tudo aquilo que, no ato de escrever, saia pelos dedos com demasiada facilidade. Porque nada verdadeiramente bom costuma vir nesse automatismo. João Cabral de Melo Neto disse melhor no poema ‘O ferrageiro de Carmona’: ‘Nem deve a voz ter diarréia”. (página 11)
“O santo sujo – A vida de Jayme Ovalle”
(CosacNaify, 2008, 400 páginas)
“Habitante dos subúrbios da arte e da cultura brasileira ao longo da primeira metade do século XX, figura mitológica de quem até agora tão pouco se sabe, Jayme Ovalle ficaria sendo uma luz refletida nos outros. Buscar a fonte dessa luz foi o que me propus fazer neste livro”. (página 11)
“Era aquilo, a poesia, o que mais interessava a Ovalle naquela fase da vida, muito mais do que a criação musical. Ainda assim, alugou um piano. Como não coubesse no seu quarto de hotel, levou-o para o vasto apartamento de uma grã-fina brasileira que morava em Park Avenue., e com a qual tivera um namorico. Um dia, porém, ao saber que a namorada tinha feito uma cirurgia para diminuir o tamanho dos seios - procedimento pouco habitual na época -, Ovalle ficou tão escandalizado, achando aquilo de uma vulgaridade sem nome, que resolveu tirar dali o seu piano”. (página 267)
“De maneira ainda mais transparente, a figura do compositor e poeta paraense já estava no primeiro romance de Fernando Sabino, ‘O encontro marcado’, de 1956, no qual pode ser reconhecido no personagem Germano, diplomata aposentado cuja sabedoria tanto impressiona Eduardo Marciano, o inequivocamente autobiográfico protagonista. Em dezembro de 1956, pouco depois do lançamento do livro, Rubem Braga escreveu a Clarice Lispector: ‘As figuras mais nítidas são o Pellegrino e o Ovalle, as outras estão meio misturadas e despistadas.” (páginas 249-250)
“Ovalle foi homem de muitas e avassaladoras paixões, pouco importando se a sua amada fosse venal ou virtuosa, pobre ou rica, branca ou de qualquer outra raça. Extrapolando o gênero humano, apaixonou-se até mesmo, veremos mais adiante, por uma pomba e por um manequim de vitrine. E não se pense que foi sempre tão platônico quanto costumava ser com as visitantes noturnas de sua casa na Conde de Lage.” (páginas 100 - 101)