O asfaltamento da Rua Jogo da Bola, em Diamantina (MG), na Região do Vale do Jequitinhonha, reacendeu debates sobre preservação urbana em cidades históricas. A intervenção, realizada no último sábado (12/4) às vésperas da Semana Santa e sem consulta prévia à população, dividiu opiniões entre moradores, especialistas e o poder público.

A obra foi feita a poucos metros do centro histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Embora o trecho asfaltado esteja fora da poligonal oficial de tombamento, trata-se de uma área de entorno imediato, vizinha a ícones como a casa de Chica da Silva e a Escola Júlia Kubitschek, projetada por Oscar Niemeyer e, atualmente, em processo de inventário pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).

Em vídeo publicado nas redes sociais, o prefeito Geferson Burgarelli (Paquito), que também é vice-presidente da Associação das Cidades Históricas de Minas Gerais, agradeceu aos trabalhadores envolvidos na obra, ressaltou que tudo foi feito em conformidade com os órgãos responsáveis e afirmou que a rua está fora da área oficialmente tombada. Ele também prometeu a revitalização de outras vias da cidade, como a Rua Rio Grande e outras do centro histórico.

Memória, mobilidade e modernização em confronto

De um lado, moradores que utilizam veículos enxergam no asfalto uma solução para o desconforto do calçamento irregular. De outro, especialistas apontam prejuízos à identidade cultural de uma cidade reconhecida como Patrimônio Mundial pela UNESCO.

A ex-secretária de Cultura Márcia Bethânia classificou a obra como um “choque dolorido”. Para ela, o calçamento tradicional é parte da memória afetiva da população e da paisagem histórica de Diamantina. Ela também alertou para o risco de alagamentos, já que a cidade carece de infraestrutura adequada de drenagem, agravada pela impermeabilização do solo.

O atual secretário municipal de Cultura e Patrimônio Alberis Vinicius  afirmou que a decisão de asfaltar a via partiu de outras pastas da prefeitura e destacou que o calçamento removido era moderno, datado da década de 1950, sem vínculo direto com o período colonial. Segundo ele, a obra atende ao plano de governo e busca melhorar a mobilidade urbana e a ibilidade.

“Onde a gente puder reduzir esse calçamento, acho que é benéfico para a população”, afirmou o secretário, citando ainda que cidades históricas da Europa usam soluções semelhantes próximas a monumentos preservados. Ele enfatizou que a preservação do patrimônio deve valorizar não apenas a estética urbana, mas também as tradições imateriais.

Diamantina não é a única cidade histórica de Minas Gerais a intervir em vias próximas a áreas protegidas. Em Tiradentes, no Campo das Vertentes, um projeto de revitalização iniciado em 2015 trouxe à tona debates semelhantes. Lá, a pavimentação com paralelepípedos e a restauração de bens como o Chafariz de São José de Botas foram autorizadas pelo Iphan. A cidade também adotou a interdição de ruas históricas aos finais de semana para estimular o turismo a pé e preservar o patrimônio dos séculos 18 e 19.

O pioneirismo de Tiradentes foi usado como exemplo por outras cidades. Ouro Preto implementou em caráter experimental a interdição de vias como a São José e a Getúlio Vargas em fins de semana, com apoio de empresários locais e autorização temporária da prefeitura.

No entanto, também houve resistência. No mesmo ano de 2015, a Justiça proibiu a Prefeitura de Ouro Preto de asfaltar ruas calçadas artesanalmente com pedras dentro do perímetro tombado, atendendo a uma liminar do Ministério Público de Minas Gerais. O Tribunal de Justiça entendeu que o capeamento violava diretrizes de preservação estabelecidas pelo Iphan.

“As pedras também são patrimônio”

O historiador Erildo Nascimento de Jesus discorda da medida tomada em Diamantina. Para ele, o calçamento em pedra é um bem cultural com valor histórico e simbólico, que integra a identidade local e até mesmo a produção artística. “Esse calçamento é parte da nossa identidade. É citado em músicas, como as de Milton Nascimento, e no próprio hino de Diamantina”, pontua.

Ele também critica o método adotado, que, segundo ele, não removeu as pedras, mas apenas aplicou o asfalto por cima. “Não estão tirando as pedras para colocar asfalto, estão jogando asfalto em cima das pedras”, resume. O historiador propõe que as pedras sejam reaproveitadas em outras áreas da cidade.

A Portaria nº 176, publicada pelo  Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Ipahan) em 2024, estabelece que, mesmo fora da poligonal principal, as áreas de entorno devem manter o calçamento tradicional sempre que possível. Márcia Bethânia considera que, à luz da norma federal, a intervenção da Prefeitura de Diamantina desrespeita orientações claras. “A ausência de um plano contínuo de restauração do calçamento, com soluções de ibilidade, é sintoma de um abandono da política patrimonial urbana”, afirma.

Entre o asfalto e a pedra

Localizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Diamantina é reconhecida como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco desde 1999, graças à preservação de seu conjunto arquitetônico e urbanístico colonial, que reflete a ocupação portuguesa nas regiões mineradoras do século XVIII.

A cidade é considerada um exemplo singular de adaptação da arquitetura europeia ao interior do Brasil. Nesse contexto, intervenções urbanas como o asfaltamento da Rua Jogo da Bola despertam atenção e controvérsia, justamente por ocorrerem nas imediações de um sítio histórico de valor internacional.

Com casarões centenários e ruas de pedra que contam histórias silenciosas, Diamantina é um território onde o tempo dialoga com o presente. O calçamento tradicional, presente não apenas no centro histórico, mas também em bairros e distritos, integra a paisagem cultural da cidade e carrega memórias da população local.

A Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e Patrimônio (SM), afirmou que a intervenção foi precedida de análise e autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com base no Parecer Técnico nº 028/2025/ETD-MG/IPHAN-MG, relativo ao Processo nº 01514.000396/2025-24. Segundo o documento, a substituição do calçamento por asfalto foi permitida exclusivamente no trecho entre a esquina da Rua Juca Neves e a Avenida da Saudade, por estar fora da poligonal do tombamento federal.

O parecer destaca que em áreas tombadas, o calçamento tradicional em pedra deve ser mantido, e que mesmo nas áreas de entorno, o uso de materiais alternativos deve respeitar diretrizes específicas, como a preservação da ambiência urbana e a manutenção do aspecto irregular do piso, sempre que possível.

A justificativa técnica apresentada pelo município aponta que o calçamento da década de 1950 encontrava-se bastante degradado, dificultando a mobilidade e comprometendo a segurança de pedestres e veículos. O projeto também considerou a existência de rede de drenagem no local e o impacto hidrológico da obra, com o objetivo de prevenir alagamentos.

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A SM informou ainda que o município mantém um banco de pedras retiradas durante a requalificação do Largo Dom João, o que possibilita a recomposição de trechos no centro histórico com material original, sem necessidade de novas extrações. Ao mesmo tempo, o governo municipal reafirmou o compromisso com a preservação dos trechos tombados e anunciou a revitalização de outras vias com manutenção do calçamento tradicional.

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