Mostra de arte

Bienal do Mercosul sai em busca de um novo amanhã em mundo de tragédias

14ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, traz o tema "Estalo", em mostra de arte contemporânea gratuita que reúne 77 artistas, de 30 países e cinco continentes

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O ponteiro avança acelerado, correndo todo o círculo em frente as letras que formam ali as palavras "a tempo", ou só "atempo", no lugar dos números. O duplo sentido na obra de Rochelle Costi, artista que morreu atropelada em São Paulo três anos atrás, ganha ares mais perversos numa cidade que também se viu mergulhada em tragédia em questão de instantes.


Esse relógio às avessas, instalado na fachada do Museu do Trabalho, em Porto Alegre, lugar que ficou debaixo d’água nas enchentes do ano ado, ilustra bem a ideia que rege esta Bienal do Mercosul, recém-aberta na capital gaúcha, depois de quase um ano de atraso por causa das chuvas que mataram dezenas de pessoas e destruíram boa parte da cidade – entre as vítimas, também os acervos de alguns de seus museus.


O clima, num calor tórrido em pleno outono, é de reconstrução, a luta contra um ambiente hostil causado em grande parte por nossos excessos. Na visão de Raphael Fonseca, que comanda esta edição de uma das mostras mais tradicionais do calendário latino-americano, estamos à beira do abismo, em ponto de ebulição. "Estalo", não por acaso, é o nome da exposição. Tudo está por um triz e pode vir abaixo num estalar de dedos, na velocidade de uma faísca.


É bem elástica a metáfora, a ideia tanto de colapso repentino quanto de ponto de virada para uma reinvenção. E os trabalhos, eletrizados por uma fome de mudança, parecem atravessados por ideias que correm trilhos em paralelo, a busca por uma identidade forjada num mundo em chamas, a reação à catástrofe, um retorno à essência da imagem hoje raptada pelo jogo de espelhos e as ilusões da era da inteligência artificial.


No fundo, estamos diante de sonhos que são também pesadelos. Espalhados por cerca de 20 espaços, os quase 80 artistas da mostra, em grande maioria do chamado sul global, dizem isso com um frescor assustador, distantes da cartilha panfletária que varre o mundo "artsy" e seus delírios "woke" e mais íntimos de uma poética própria calcada na metamorfose de corpos dissonantes, vítimas e ao mesmo tempo agentes de transformação num lodaçal apocalíptico.


Zé Carlos Garcia, numa série de esculturas no átrio da Fundação Iberê Camargo, mostra braços, mãos e rostos que surgem de troncos e galhos secos, mutantes nascidos de escombros. Eles gritam diante de uma tela do artista que dá nome ao museu, monumental autor do desgosto, a tragédia encarnada em tinta, como fantasmas que vagam sem fôlego, idiotas que são todos eles. Os desenhos de crânios do mesmo Iberê Camargo, frios estudos anatômicos, são as testemunhas desse "big bang" talhado em madeira, mais ossos do que carne.


Num filme no Farol Santander, Vitória Cribb mostra a transformação de uma mulher em lagarto e vice-versa, uma animação hiper-realista em que pele, escamas, olhos esbugalhados e dentes afiados habitam o mesmo corpo no banheiro asséptico de uma casa minimalista – novas espécies de um irável mundo novo.


Está deserto o ambiente decorado construído por Marcus Deusdedit, que vira do avesso a ideia de máquina de morar do modernismo de Le Corbusier para inventar uma verdadeira máquina de matar. A porta é uma guilhotina e o espelho despenca sobre quem tenta ver seu reflexo.

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O artista leva ao interior burguês, numa sátira às modas que povoam casas de colecionadores de arte, aquilo presente no mobiliário urbano de todas as cidades modernas. É o que ele chama de "Ouvindo muito trap enquanto faço interiores", um lar para ninguém alicerçado em todos os rachas que atravessam nossa sociedade movida a estalos. (Silas Martí)


“BIENAL DO MERCOSUL”
Mostra de arte contemporânea, com tema "Estalo", com 18 locais para visitação diária e gratuita, até 1º de junho. Sob a curadoria de Raphael Fonseca e uma equipe de mais sete curadores, a mostra reúne 77 artistas, de 30 países e cinco continentes.

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