
A liberdade de decidir não envelhece
Entender que independência e autonomia vivem juntas, mas em campos distintos, nos liberta do medo de envelhecer sem controle
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Envelhecer é uma experiência que desafia certezas e convoca à reinvenção. Em algum momento da vida, a independência - essa capacidade de realizar tarefas do cotidiano sem ajuda - começa a ser flexibilizada. A força nas pernas já não é mais a mesma, a visão exige mais atenção, a disposição pede pausas. Mas perder a independência funcional não significa perder o direito à escolha, à dignidade e ao protagonismo da própria vida.
É aqui que entra a autonomia. A médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, em seu livro “Pra vida toda valer a pena viver”, nos lembra que autonomia é o poder de decidir, mesmo quando há limitações físicas. É possível, por exemplo, precisar de alguém para servir o prato (dependência), mas ainda assim ser você quem escolhe o que deseja comer (autonomia). Pode ser necessário contar com um motorista para levá-lo a uma festa (dependência), mas a decisão de ir ou não, o horário de saída e até quanto tempo ficar continuam sendo escolhas suas (autonomia).
Entender que independência e autonomia vivem juntas, mas em campos distintos, nos liberta do medo de envelhecer sem controle. Aceitar limites funcionais e, ao mesmo tempo, garantir a liberdade de decidir é o caminho para uma maturidade plena — uma vida na qual cada escolha continua sendo sua, por mais que as mãos que a auxiliem mudem.
Essa distinção é essencial para uma velhice mais saudável e respeitosa. Quando confundimos dependência com incapacidade total, corremos o risco de silenciar desejos, apagar histórias e infantilizar quem apenas precisa de apoio e não de tutela. A autonomia preserva o senso de identidade, a autoestima e a liberdade. É um lembrete diário de que podemos precisar de ajuda para executar, mas jamais devemos perder o direito de escolher.
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Outro ponto poderoso trazido por Ana Claudia é o convite para “aprender a dar trabalho”. Em uma sociedade que valoriza a performance, a agilidade e a autossuficiência, assumir que precisamos de cuidados pode parecer incômodo ou até vergonhoso. Muitos preferem o silêncio à exposição, o isolamento ao pedido de ajuda. Mas negar esse processo é também negar nossa humanidade.
Dar trabalho, neste contexto, é um ato de coragem e confiança. É reconhecer que somos seres interdependentes, não apenas no envelhecimento, mas em toda a vida. Nascemos dependentes de cuidados, crescemos nos apoiando em vínculos, e mesmo na fase adulta, só somos verdadeiramente plenos em relação. Somos seres interrelacionais, construídos no afeto, no cuidado mútuo, na troca.
Há uma beleza profunda no fato de permitir que alguém cuide de nós. Não como um fardo, mas como uma oportunidade de amor em movimento. E, como propõe Ana Claudia, que, ao pararmos de dar trabalho, sejamos lembrança de saudade e não de alívio. Isso exige que, ao longo da vida, tenhamos gestos de gratidão, cultivemos relações verdadeiras e sejamos companhia que vale a pena.
Envelhecer, portanto, não é apenas acumular anos - é aprender a se posicionar entre a autonomia que preserva a identidade, a dependência que acolhe limites e a interdependência que fortalece vínculos. É compreender que dar trabalho é parte da vida, e que o cuidado, quando guiado pelo afeto e respeito, se transforma em laço e em legado.
Como nos lembra Soren Kierkegaar: “A vida só pode ser compreendida olhando para trás, mas deve ser vivida olhando para frente”.
Se você está vivenciando esse momento - seja como quem precisa de ajuda, seja como quem cuida - saiba que há sabedoria em aceitar, força em pedir, e dignidade em continuar escolhendo.
E você? Tem respeitado suas escolhas e necessidades? Tem permitido que alguém o ajude com carinho? Ou ainda se recusa a “dar trabalho” por medo de incomodar? Quais pequenos gestos de gratidão e leveza pode oferecer a quem se dispõe a cuidar de você?
Permita-se refletir. Ainda há muito por viver. E toda vida vale a pena — desde que seja vivida com consciência, respeito, desejos e afeto.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.