
O registro do diálogo se encontra em correspondência datada de 19 de junho de 1822. Os meses que separam essa carta e a consumação da proclamação da independência, em 7 de setembro de 1822, registraram uma escalada de tensões entre o príncipe regente e as Cortes Constituintes, também chamadas de Soberano Congresso, expressão de um embate entre a perspectiva portuguesa de “regeneração” do poder de Lisboa, e a brasileira, de que estaria em curso uma “recolonização” do Reino do Brasil.
“A decisão pela independência não surgiu de repente, da insatisfação de Dom Pedro ou das elites ligadas a ele com as Cortes Constituintes de Lisboa. Suas raízes foram múltiplas. Está relacionada, por um lado, ao sentimento nativista de alguns; por outro, das particularidades culturais que em uma das dimensões aram a diferenciar brasileiros e portugueses; do processo de efetiva descolonização vivido em 1815, com a criação do Reino Unido; e ainda do temor da “recolonização”, a partir de 1821, com o retorno de Dom João VI para a Europa”, analisa o historiador Hélio Franchini Neto.
A todas essas variáveis, que contribuíram para empurrar o processo emancipatório, soma-se a falência dos reinos. Em Portugal e no Brasil, o alvorecer das ideias liberais e antiabsolutistas veio acompanhado de profundo déficit fiscal dos estados, consideram Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira, autores de “Adeus, senhor Portugal, crise do absolutismo e a Independência do Brasil” (Companhia das Letras, 2022). Em interpretação ampla do processo emancipatório brasileiro, eles articulam as tensões políticas e sociais do período com a questão fiscal da Coroa.
Já ao final da década de 1810, no contexto das Guerras Napoleônicas e da transferência da corte para o Rio de Janeiro, o desequilíbrio orçamentário era evidente: faltavam pagamentos aos servidores civis e militares e era desenfreada a emissão de papel-moeda, o que gerava inflação e impactava os preços dos alimentos. Cresciam as insatisfações em Portugal e no Brasil. Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira atentam para um duplo movimento de instabilidade: ao mesmo tempo em que impostos e inflação crescentes pioravam a vida da população e insuflavam nas províncias as revoluções de caráter autonomista, também a crise orçamentária em 1820, na qual se afundava o Reino Unido do Brasil, de Portugal e Algarves, era um reflexo do desgaste das instituições do antigo regime, incapaz de zelar pelo equilíbrio do tesouro.
"REGENERAÇÃO" E EMBATE 2496l
Embora tenha sido um movimento complexo e de inúmeras nuances, pode-se dizer que a Revolução do Porto tenha se caracterizado pela instauração de um novo governo de caráter constitucional e liberal, pondo fim à monarquia absoluta em Portugal. O movimento trouxe a tentativa de Lisboa de recuperar o poder, o que, na visão das elites brasileiras, representaria a recolonização. Assim, as Cortes Constituintes de Lisboa pretendiam garantir para Portugal o governo de um único reino de duas seções, a europeia e a americana; diferentemente da configuração vigente desde 1815, de dois reinos autônomos sob um único monarca.
Ao solapar a autoridade do Rio de Janeiro, articulando-se diretamente com as províncias, as Cortes Constituintes aprofundavam as instabilidades e conflitos locais no Brasil, que assistira entre as últimas décadas do século 18 e no alvorecer do século 19 às conjurações Mineira, Baiana, dos Suassuna e a Revolução Pernambucana de 1817, que chegara a instalar uma república por curto período, antes de ser esmagada pelas forças da Coroa.
Da herança colonial, não havia na América portuguesa um elemento de unidade territorial e de nacionalidade, e, sim, a força das localidades, com dinâmicas heterogêneas. E embora a chegada da família real, em 1808, tenha favorecido certa unificação em torno da Coroa no Centro-Sul do Brasil – em particular, Rio de Janeiro e São Paulo –, o príncipe regente se encontrava à frente de quase duas dezenas de províncias, de onde germinavam distintos projetos políticos e anseios por vinculações ou autonomia, segundo os interesses econômicos e sociais locais.
A partida de Dom João VI para Portugal, em 26 de abril de 1822, foi precedida de significativa convulsão social. Com o propósito de desmantelar a estrutura de governo estabelecida a partir de 1808 no Rio de Janeiro, as Cortes editaram sucessivos decretos, dois deles em setembro de 1821, que precipitariam o endurecimento do confronto com Dom Pedro. Enquanto o primeiro decreto estabelecia Juntas Provisórias de Governo nas províncias e transferia o poder militar aos governadores de Armas, chefes das forças armadas de cada região istrativa, escolhidas diretamente por Portugal, o segundo determinava o retorno do príncipe regente a Lisboa.
Não apenas no Rio de Janeiro, mas em São Paulo e em Minas, a resistência a tais decretos se mobilizou rapidamente. Nascia assim o projeto de emancipação fluminense, secundado por Minas Gerais e São Paulo. “Teve-se, então, o momento propício para a união entre o regente e o projeto de independência encabeçado por José Bonifácio, que contou também com o apoio de outras tendências políticas, unificadas pelo conflito contra inimigo comum”, afirma o historiador Hélio Franchini Neto.
Em correspondência ao pai, datada de 15 de dezembro de 1821, Dom Pedro informava as gestões de representantes de Minas Gerais e de São Paulo para que permanecesse no Brasil. Caso contrário, seria declarado algum tipo de independência.
Personagem central na construção do Dia do Fico, anunciado em 9 de janeiro de 1822, e também do projeto vitorioso de Estado monárquico centralizado da Independência do Brasil, a princesa Leopoldina mantinha estreita interlocução com a diplomacia do Império Austríaco, de seu pai, Francisco I, instalada no Rio de Janeiro e com a qual compartilhava o entendimento de que a presença do príncipe regente seria a única chance de se manter a monarquia no Brasil, o que possibilitaria, futuramente, restabelecer a unidade com Portugal, já que Dom Pedro I era herdeiro do trono luso.
Ao Fico seguiram-se atos militares de resistência e expulsão da Divisão Auxiliadora e rechaço da esquadra portuguesa do almirante Francisco Maximiliano de Sousa. Consolidou-se um centro político no Rio de Janeiro, que aria a se contrapor às Cortes e a Lisboa, ao mesmo tempo em que alinhava a aliança entre diferentes grupos de interesse nas províncias, unidos em torno da figura de Dom Pedro, mirando algo maior do que as suas próprias diferenças. Autodenominaram-se as Províncias Colligadas (Rio de Janeiro, Minas e São Paulo).