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Estado de Minas

"O ressentimento está enraizado na sociedade" 2d2s53

A partir dos conceitos de Pierre Bourdieu e Tzvetan Todorov, a psicanalista Maria Rita Kehl revisita sua obra pioneira sobre o sentimento que Nietzsche definiu como "uma vingança adiada" e amplia o significado para o cotidiano e a política nacionais 1a2u


14/08/2020 04:00 - atualizado 13/08/2020 18:57

(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)

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Apesar de o imperativo da alegria do futebol, da cordialidade e de festas populares como o carnaval constituírem a face externa mais propagada do Brasil; temerosa de parecer ressentida, a sociedade brasileira costuma “deixar barato” o resgate de grandes injustiças de sua história. Além de não elaborar e agir coletivamente para superar os próprios traumas – como a escravidão, a violência contra indígenas e a tortura praticada pelo estado brasileiro contra opositores do regime autoritário-militar instalado pelo golpe de 1964 –, a sociedade brasileira tem pressa em perdoar e em esquecer. Em consequência, não reconhece a própria responsabilidade coletiva pela solução de seus problemas, atribuindo sempre a um outro a “culpa” por todos os seus males. 

Ressentimento é o nome da obra pioneira da psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, que ganha nova edição pela Boitempo. A autora considera: “O ressentimento na sociedade brasileira está enraizado em nossa dificuldade em nos reconhecermos como agentes da vida social, sujeitos da nossa história, responsáveis coletivamente pela resolução dos problemas que nos afligem”. 

O livro conceitua o ressentimento a partir da perspectiva da clínica psicanalítica, da filosofia de Nietzsche e de Espinosa, da produção literária e do campo da ação política. “Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer”, afirma ela. “A ividade é uma das atitudes que caracterizam o ressentido, um vingativo que não se reconhece como tal”, define a autora, que concedeu a seguinte entrevista ao Estado de Minas. 

O que é o ressentimento e como esse tema é tratado pela psicanálise?
O ressentimento não é um conceito da psicanálise. Pesquisei muito e não encontrei na psicanálise nada específico sobre o ressentimento. Pensei em começar a desenvolver essa teoria neste livro. Nietzsche foi o filósofo que desnudou a patologia do ressentimento e articulou-a aos valores morais impostos pelo cristianismo. O ressentimento é uma categoria do senso comum que nomeia a impossibilidade ou a recusa de esquecer ou superar um agravo. Na língua portuguesa, o prefixo “re” indica o retorno da mágoa, a reiteração de um sentimento. O ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou perdoar; é alguém que não quer esquecer, não quer superar o mal que o vitimou. É diferente de uma mágoa, em relação à qual, se a pessoa se desculpar, a. A ividade é uma das atitudes que caracterizam o ressentido. É assim que Nietzsche diz que o ressentimento é uma vingança adiada: você quer se vingar, mas não tem coragem, não chegou a hora, não sabe o que fazer. Ressentir-se significa, então, atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. E ao não assumir a responsabilidade sobre a própria situação, o ressentido busca apenas uma vingança imaginária e adiada. Talvez o ressentido seja capturado por algo que Freud chama de “a covardia moral do neurótico”: quer ser tão bom, tão especial, tão puro que não enfrenta, recua porque finge uma superioridade moral, mas não perdoa. Então, o ressentido é um vingativo que não se reconhece como tal.

Se a ividade é uma das características do ressentimento, assim como lançar sempre a culpa sobre o outro não assumindo a responsabilidade sobre a própria situação, que consequências tem ressentimento sobre a cidadania e a vida política?
Vários autores, entre os quais o filósofo alemão Max Scheler (1874-1928), sugerem que o ressentimento social tenha origem nos casos em que a desigualdade é sentida como injusta diante de uma ordem simbólica fundada sobre o pressuposto da igualdade. Então seria mais provável encontrar esse sentimento em democracias liberais modernas – que acenam para os indivíduos com a promessa de uma igualdade social que não se cumpre, pelo menos nos termos em que foi simbolicamente antecipada – do que em sociedades de castas, fortemente estratificadas, sem mobilidade social. A atitude ressentida, de ividade queixosa, torna os sujeitos impotentes como agentes da transformação política que lhes interessa. Então, no dizer de Pierre Bourdieu, o ressentimento é uma revolta submissa. A atitude que se opõe a ela, diante de injustiças e humilhações, seria a da revolta ativa, por todos os meios legítimos de que a sociedade democrática dispõe. Uma das causas do ressentimento seria, assim, o divórcio entre a potência do sujeito e sua capacidade de agir: é o terreno dos afetos reativos, da vingança imaginária e adiada, da memória que só serve à manutenção de uma queixa repetitiva e estéril. O ressentido deseja a ordem – por isso é compatível com o conservadorismo – contanto que possa beneficiar-se dela, nem que seja na condição de vítima. Se o ressentimento é o avesso da política, ele só pode ser curado pela retomada do sentido radical da ação política. O ato político implica sempre risco de desestabilizar a ordem. Ao contrário da resignação ressentida, da revolta submissa do ressentimento, ele nasce de uma aposta na possibilidade de se modificarem as condições estruturais presentes em sua origem.

Em sua avaliação, o ressentimento coletivo – típico de determinadas conjunturas – pode explicar a ascensão pelo voto de regimes como o nazismo, o fascismo e de lideranças populistas como presenciamos na atualidade, mundo afora?
O filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017) atribui ao ressentimento a eleição de Hitler na Alemanha, que se deu pela frustração de uma classe média baixa espremida entre a burguesia e a potência de luta do proletariado durante a grande inflação do início dos anos 1930. Para Todorov, o ressentimento na Alemanha brota de parte das chamadas “classes decadentes”. Ao buscar uma estratégia de desidentificação com seus vizinhos mais pobres e fracassar na tentativa de ascensão social, milhões de cidadãos dessa classe média decaída encontraram a resposta na designação de um culpado pelo sofrimento que eles entendiam como humilhação social. 

E, nesse caso, como se revela a subjetividade do ressentimento" />

Ressentimento
De Maria Rita Kehl
Boitempo Editora
208 páginas
R$ 53

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