
O tão aguardado documentário sobre o Racionais MCs mostra como o quarteto mudou a forma como a juventude das periferias se vê e se expressa. Dirigido por Juliana Vicente, o filme apresenta a caminhada de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay desde o início, quando se conheceram na Estação São Bento, nos anos 1980, espaço da capital paulista essencial para a compreensão do hip-hop nacional. O grupo está entre os nomes consagrados da música brasileira.
Acompanhar a saga protagonizada pelos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” (como eles mesmo se intitulam, não por acaso) é acompanhar o desenvolvimento de uma narrativa de pessoas pobres, pretas e faveladas sobre si mesmas, sobre a construção de todo um universo simbólico que envolve a superação das mazelas provocadas pela escravidão, violência racial e exclusão social num país em que verdadeiro abismo separa pobres daqueles que têm o mínimo à educação e moradia dignas.
Duplas, o começo de tudo 1n21c
O filme traz cenas de arquivo raras, como apresentações de Brown e Blue, Edi Rock e KL Jay, quando eram duplas separadas, antes do surgimento desse símbolo quase mitológico que são hoje. O documentário aborda o começo do processo que levou ao surgimento de clássicos como “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, primeiras gravações da banda recém-formada, na coletânea “Consciência Black Vol 1”.
Quando ouvi falar de Racionais pela primeira vez, devia ter 13 anos, e me impressionava quando encontrava pessoas que sabiam de cor letras complexas como a de “Pânico na Zona Sul”.
Havia uma postura, uma forma de declamar, que colocava jovens negros como eu num lugar diferente daquele a que estávamos acostumados, numa posição combativa e também de orgulho, algo raro naqueles tempos para a maioria de nós.
As discussões sobre consciência racial e orgulho negro circulavam basicamente dentro do Movimento Negro, formado por pessoas com o ao conhecimento, ainda que esse o fosse resultado de muitas lutas. Elas eram exceções. Muito antes de se dar conta disso, o Racionais fez com que essas questões chegassem à juventude muito distante daqueles espaços de discussão.
Quando fala sobre a responsabilidade colocada sobre o Racionais e sobre ele próprio, aos 19 anos, Brown comenta: “Eu não tinha nem chuveiro quente, como é que eu ia defender o povo">
Do desespero à esperança 1m5f6y
Em “Sobrevivendo no inferno” (1997), trabalho considerado por muitos como o clássico maior da discografia do grupo, as falas e imagens remetem ao país violento, em convulsão. “Nada como um dia após outro dia” (2002) apresenta uma periferia esperançosa, com orgulho de si mesma.
Cada lançamento é tratado como um capítulo que demonstra como as músicas traduziram seu tempo e, mais que isso, ajudaram a moldá-lo. Destaco o papel que o Racionais teve ao tecer narrativas que não se limitaram a reportar sobre o tempo em que se vivia, mas contribuíram para mudar seus rumos.
A prova disso são os milhões de jovens que, apoiados naquelas histórias e exemplos, literalmente sobreviveram ao inferno e aprenderam sobre as próprias cores e os próprios valores.

Ter esta história registrada e compartilhada num espaço relevante, como a gigante do streaming Netflix, representa uma ruptura ao eternizar frases, faces e visões de mundo que, num país como o Brasil, foram silenciadas, violentadas e invisibilizadas desde que o primeiro navio negreiro aportou por aqui. Racionais no ar!
* Roger Deff é rapper em BH, mestre em artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e jornalista pela PUC Minas