Macaca atropelada vira referência genômica de projeto brasileiro
Com base nessas informações, a iniciativa pretende auxiliar nas estratégias de conservação das espécies
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Siga noSÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Lá estava, em uma estrada amazônica, uma macaquinha-caiarara atropelada. O que poderia ser somente mais uma tragédia associada a abertura de vias na maior floresta tropical do mundo, acabou levando a primata a ser um animal de referência em um projeto de sequenciamento genético.
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Dois anos após seu início, os primeiros resultados serão apresentados nesta terça-feira (27), na sede do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), em Brasília. O projeto, desenvolvido pelo ICMBio e pelo ITV DS (Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável), conta com financiamento da mineradora Vale.
Um Cebus kaapori, também conhecido como macaco-caiarara Tatiane Cardoso Um macaco está posicionado em um galho de árvore, cercado por folhas verdes. O animal tem pelagem clara e um rosto expressivo, com um olhar curioso. O fundo é composto por uma densa folhagem, criando um ambiente natural e tropical. Entre os resultados estão 2.249 amostras coletadas e 1.175 sequenciamentos realizados. Recortando só a parte de fauna da iniciativa, foram sequenciados 743 genomas (o conjunto do DNA) de 413 espécies. Desse total, destacam-se 23 genomas que os integrantes do projeto consideram como de referência para as espécies que serão catalogadas, ou seja, foram feitos com um maior nível de detalhe.
"O genoma de referência é como se fosse um 'mapa genético' completo de uma espécie, que ajuda a entender melhor como ela vive, se adapta e quais desafios enfrenta, tais como doenças, impactos das mudanças climáticas ou a perda de diversidade genética. Com essas informações, é possível criar estratégias mais eficazes para proteger animais e plantas ameaçados", diz Amely Branquinho Martins, analista ambiental do ICMBio e coordenadora do projeto pelo instituto.
Um desses casos de sequenciamento de referência é o da macaca-caiarara (Cebus capore) atropelada, cuja espécie é tida como criticamente em perigo de extinção e já fez parte da lista dos 25 primatas mais ameaçados do mundo, feita pela IUCN (International Union for Conservation of Nature and Natural Resources).
Ela sobreviveu ao atropelamento, foi resgatada e levada para um centro de primatas em Ananindeua, no Pará. Posteriormente, foi possível fazer a coleta de sangue do animal para o sequenciamento.
Além de ser um exemplo desses genomas de referência, a macaca demonstra as dificuldades envolvidas no projeto. "É uma espécie difícil de amostrar, difícil, inclusive, de visualizar em campo", afirma Martins. "Ela [a espécie] não cai em armadilha fácil e as áreas [onde vive] são de difícil o."
Segundo o mais recente "Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção", nem mesmo é possível saber o tamanho da população de macacos-caiararas existente.
A dificuldade do projeto aumenta ainda mais pela tentativa de se fazer uma genômica populacional de espécies -entre elas de caiararas-, ou seja, conseguir mais amostras para aprofundar o conhecimento sobre distribuição, isolamento e possíveis estratégias de conservação.
Até o momento foram feitos 336 genomas populacionais de 11 espécies, entre os quais o da harpia (Harpia harpyja), vulnerável à extinção.
A ave saíra-apunhalada (Nemosia rourei) é outra criticamente em perigo e dificílima de se ver na natureza, quiçá coletar material. As estimativas recentes apontam para menos de 50 indivíduos maduros. Segundo Guilherme Oliveira, diretor-científico do ITV DS, o projeto conseguiu a coleta nesse caso graças a uma ONG que monitora a ave.
Os coordenadores do GBB ressaltam o trabalho em rede necessário para fazer o projeto caminhar. Segundo dados da iniciativa, 107 instituições nacionais e internacionais colaboraram até o momento.
Há ainda outras dificuldades, como bichos pequenos demais para a extração de material genético e com risco de morrer no processo. É o caso da perereca-de-bromélia (Xenohyla truncata), em perigo de extinção.
Até o final do projeto, pretende-se alcançar pelo menos 80 genomas de referência e mil populacionais.
Para ter o aos materiais genéticos pretendidos, o GBB vai atrás de animais em cativeiro, em bioparques, que podem estar feridos sob os cuidados do próprio ICMBio ou que possuem amostras depositadas em biobancos brasileiros.
Em relação à bioeconomia, Oliveira diz que o país tem poucas informações genéticas sobre as espécies da nossa biodiversidade que são usadas. "Por exemplo, pescados. Quanto se pode pescar de uma espécie de peixe sem depletar a diversidade genética dessa espécie? O mundo inteiro não pode comer pirarucu como se come frango. Então, quanto que se pode pescar? Qual é o valor desse peixe? A gente agora pode ser muito mais assertivo quanto a isso e olhando para a manutenção das populações no ambiente e valorizando o trabalho."
DNA AMBIENTAL
Além das amostras de espécimes, o projeto trabalha com o chamado DNA ambiental. Nesse tipo de análise, os pesquisadores buscam, a partir de coletas no ambiente, identificar as espécies que estão presentes naquela região.
"Por exemplo, você pode coletar água de um rio para ar a diversidade de espécies que estão naquele ambiente. Mas, para fazer isso, você precisa de referências genéticas das espécies que ocorrem ali", afirma Oliveira. Dessa forma, o projeto, em parte, busca exatamente a construção dessas referências.
O pesquisador diz que um banco de referências com alta resolução e o DNA ambiental podem, eventualmente, vir a ser usados como ferramentas de monitoramento e até mesmo para emissão de créditos de biodiversidade (em algo semelhante ao que se a com os créditos de carbono).
Para o DNA ambiental, as coletas feitas são de água, solo, plantas e insetos. Martins participou do primeiro projeto dentro do GBB sobre o assunto, com uma expedição para a Floresta Nacional do Tapajós para coleta. Foram mais de 200 amostras coletadas.
Voltando à macaca-caiarara atropelada, hoje ela está bem, apesar de ter um problema na perna. A esperança para a macaquinha, segundo Martins, é que ela, além de ter se tornado uma referência genômica da espécie, seja uma das fundadoras de um programa de manejo cativeiro para reprodução futura.