Minha Casa, Minha Vida: sonho vira pesadelo na Grande BH
Dados do Ministério das Cidades mostram que Minas tem cerca de 10 mil imóveis do Minha Casa, Minha Vida não entregues
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Siga noPaulo Tomás Rodrigues vive em uma casa feita de madeira e barro no povoado de Cândidas, distrito de Raposos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Há pouco mais de sete anos, foi contemplado pelo Minha Casa, Minha Vida com o sonho de conquistar, pela primeira vez na vida, seu imóvel próprio. Recebeu, inicialmente, R$ 28 mil para adquirir materiais de construção e erguer, com as próprias mãos, a nova residência naquela que é única rua do local, sem endereço fixo para correspondências nem o a saneamento básico. Após a construção, decidiu presentear a filha, neta e bisnetos com o novo lar. “Eles precisam mais do que eu”, disse o homem, que continua vivendo em sua antiga moradia na cidade.
A realidade da família de Paulo, no entanto, está longe de ser tendência no distrito da zona rural de Raposos. O contrato do governo federal em Cândidas foi assinado em abril de 2013 e previa a entrega de 28 casas. aram-se 12 anos, mas oito unidades nunca saíram do papel, segundo números do Ministério das Cidades consolidados pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas em parceria com a agência Fiquem Sabendo.
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O atraso registrado em Raposos não é isolado e escancara a falha da política pública pensada para reduzir o impacto do déficit habitacional no país. Em Minas, ao mesmo tempo que a Fundação João Pinheiro (FJP) computa 556 mil domicílios com algum tipo de vulnerabilidade, o Minha Casa, Minha Vida registra 9.167 imóveis em construção ou já embargados pelo governo federal por diferentes motivos. Dessas quase 10 mil casas nunca entregues, cerca de 5,1 mil tiveram contratos assinados entre 2009 e 2018.
Portanto, há um atraso de, pelo menos, sete anos por parte do poder público para a entrega dessas 5,1 mil casas em Minas. Os outros imóveis, que complementam o dado de 9.167 residências não entregues no Estado, dizem respeito a acordos mais recentes, assinados na gestão Lula 3, portanto precisam de mais tempo para sua completa execução.
Em Raposos, as famílias contempladas pelo programa vivem uma jornada dupla: ora trabalham em fazendas próximas ao povoado, ora estão na construção das casas que um dia serão delas. O grupo depende de vistorias periódicas do que já foi feito para a liberação de novos recursos, que são reados pelo governo à Caixa Econômica Federal. O banco, por sua vez, envia o valor em nome de cada beneficiário individualmente. Tudo a pela istração da Agência Opus de Desenvolvimento Social, a ONG co-responsável pelo empreendimento.
O diretor-presidente da Opus, Rubens Kroeff, deixou o sul do país para viver em Minas Gerais. Hoje, coordena os trabalhos de construção na comunidade em um escritório improvisado. “Nós começamos essas casas com R$ 28,5 mil. Atualmente, o recurso total está em cerca de R$ 75 mil. Houve um reajuste, agora recente, que reou mais R$ 50 mil. A gente compra o material e constrói. Feita aquela parcela, a Caixa vem e confere. Mede se o serviço foi feito. Daí, paga o serviço já realizado”, diz ele sobre o cronograma.
Segundo Kroeff, as famílias que não conseguiram concluir suas casas vivem em sítios próximos. “Elas têm necessidades. A gente não tem conseguido a adesão deles no serviço para ajudar com a mão-de-obra. Então, com isso, atrasa mais, porque o dinheiro é muito pequeno para esse projeto. Basicamente, é comprar o material, e a pessoa conseguir fazer a casa. Só que o pessoal não tem qualificação. São pessoas humildes, que entendem um pouquinho de capina, de horta, de coisas assim, mas de construção civil não”, afirma.
A falta de recursos para a contratação de mão de obra qualificada faz com que as casas rapidamente precisem de reparos, como conta Eni dos Santos, uma das beneficiadas pelo Minha Casa, Minha Vida em Raposos. “Antes, eu morava em uma casa muito simples, mas com as chuvas desabou tudo. Se não fosse o programa, eu estaria com problemas. Mas, eu moro na casa que construímos há sete anos e lá já está precisando de conserto”. A mulher complementa: “O povo aqui não sabe construir, não tem jeito. Não tem como vir todo final de semana para trabalhar também, porque precisamos garantir nosso sustento. Então, muitos desanimam”.
Casas não entregues
As falhas do Minha Casa, Minha Vida não se restringem a Minas Gerais. Os dados do Ministério das Cidades consolidados pela reportagem mostram que 227.722 casas do programa ainda não foram entregues, apesar dos contratos assinados. Excluindo os acordos contemplados no ano ado, que evidentemente precisam de mais tempo para execução, são 182.452 imóveis em atraso, entre aqueles em construção e os já cancelados pelo governo. São residências que poderiam amenizar o déficit habitacional de 6 milhões de domicílios em todo o país, segundo cálculo da FJP em pesquisa divulgada em abril do ano ado.
Coordenador do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Matheus Araújo relata que a burocracia do programa aumentou consideravelmente durante o terceiro mandato do presidente Lula (PT), ainda que a política pública tenha retornado após ser congelada nos governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).
“O governo exige dos movimentos a mesma entrega documental que cobra de estados e prefeituras, só que nós não temos o mesmo aparato técnico. Em Diadema (SP), por exemplo, temos um empreendimento com problemas porque o governo exige um laudo para comprovar que o solo do terreno não está contaminado. Mas não temos nenhuma indústria próxima. Esse levantamento custa cerca de R$ 80 mil. É uma luta muito grande”, afirma.
O problema do atraso na entrega das casas, como acontece em Raposos, na Grande BH, atinge também pessoas em vulnerabilidade social atendidas pelo MLB. “É muito comum que uma família desista de esperar a entrega daquele contrato. Só que quando ela precisa aderir a um novo (acordo do MCMV), o programa barra o F, porque aquela pessoa já consta como beneficiária. Daí, é uma nova burocracia para comprovar a não entrega daquela primeira casa, para tentar desvincular o F do imóvel em atraso”, afirma Araújo. Segundo o coordenador, em alguns casos, os núcleos familiares nem enfrentam a mesma realidade de outrora e já vivem em outros municípios, por exemplo.
As limitações da eficácia do programa vão também além do controle do governo federal. O coordenador nacional do MLB cita como exemplo o caso de um empreendimento aprovado pelo movimento no Rio Grande do Norte. “Lá, o terreno da União está ocupado por uma empresa privada, que invadiu o lugar há muitos anos. Estamos aguardando a Justiça aprovar uma reintegração de posse para iniciar as obras. Nosso trabalho envolve articulações em Brasília e também a mobilização da própria população”, diz.
O que diz o Ministério das Cidades
Em nota, o Ministério das Cidades rebateu os números de sua própria base de dados. "Atualmente, há 235,8 mil unidades habitacionais vigentes (em construção) no Brasil. Em Minas Gerais, o levantamento de dezembro de 2024 aponta 4,4 mil unidades não entregues, sendo 2,5 mil em andamento e 1,9 mil paralisadas, em análise para possível retomada", informou.
A pasta também justificou os atrasos. "Eles decorrem de múltiplos fatores, como questões judiciais e entraves istrativos. Desde 2023, cerca de 39,8 mil unidades habitacionais tiveram as obras retomadas, e outras 24,9 mil tiveram sua paralisação evitada com suplementação de recursos. No Minha Casa, Minha Vida, já foram contratadas 1,29 milhão de novas unidades até fevereiro de 2025, superando 64% da meta prevista até 2026", garantiu o governo.
Em relação a Raposos, o ministério esclareceu que "as obras, com execução de cerca de 87%, tiveram plano de retomada aprovado pela Caixa em 2023 e devem ser concluídas até dezembro de 2027".
Procurada, a prefeitura da Grande BH informou que o projeto “está em processo de resolução”, a partir de uma parceria com uma mineradora. Segundo a istração municipal, a negociação a pela doação de um novo terreno pela iniciativa privada, “mas ainda não há nada concreto”.
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Ministro promete novas chamadas
Em entrevista recente à comunicação do governo, o ministro das Cidades, Jader Filho, garantiu que a istração federal prepara uma nova chamada do Minha Casa, Minha Vida, apesar dos atrasos das unidades já contratadas, como mostrou a reportagem. O dinheiro virá do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
"Devemos fazer mais de 100 mil novas unidades na seleção do Minha Casa, Minha Vida", disse. "Daremos todas as informações dessa nova seleção que vai se iniciar. Para as outras modalidades que aconteceram no ano ado, nós vamos fazer a partir de financiamento do FGTS. As pessoas vivem nas cidades, e é lá que temos que levar políticas públicas", completou. As falas de Jader Filho aconteceram em um contexto de cobrança do governo em relação ao chamamento, já adiado em duas oportunidades. Em abril do ano ado, Lula anunciou a portaria, mas o prazo foi prorrogado em outubro. No último dia 4, novamente adiado, com previsão, agora, para junho de 2025.