Leia trechos da 'Prosa completa' de Alejandra Pizarnik
Publicado após a morte da poeta argentina no início dos anos 1970, volume reúne textos dispersos em revistas ou que permaneciam como manuscritos inéditos
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Tradução de Nina Rizzi e Paloma Vidal
“Contra”
Tento evocar a chuva ou o choro. Obstáculo das coisas que não querem ir no caminho do desespero ingênuo. Esta noite quero ser de água, que tu sejas de água, que as coisas deslizem como fumaça, imitando-a, dando últimos sinais, cinzas, frios. Palavras na minha garganta. Lacres intragáveis. As palavras não são bebidas pelo vento, é uma mentira aquele papo de que as palavras são pó, quem dera fossem, assim eu não faria agora orações de louca iminente que sonha com súbitas desaparições, migrações, invisibilidades. O sabor das palavras, esse sabor de sêmen velho, de ventre velho, um osso que confunde, um animal encharcado de água negra (o amor me obriga a fazer as caretas mais atrozes diante do espelho). Eu não sofro, só expresso o meu nojo pela linguagem da ternura, esses fios encarnados, esse sangue aguado. As coisas não escondem nada, as coisas são coisas e, se alguém se aproximar agora, e me disser dê nomes aos bois, começarei a uivar e dar cabeçadas em todas as paredes infames e surdas deste mundo. Mundo tangível, máquinas azucrinantes, mundo usufruível. E os cachorros me ofendendo com seus pelos oferecidos, lambendo lentamente e deixando sua saliva nas árvores que me enlouquecem. (1961)
“Um rosto”
Um rosto diante dos teus olhos que o olham e por favor: que não haja olhar sem ver. Quando olhas seu rosto — por paixão, por necessidade, como a de respirar — acontece, e descobres isso muito depois, que sequer o olhas. Mas se o olhaste, se o bebeste como só pode e sabe uma pessoa sedenta como tu. Agora estás na rua; te afastas invadida por um rosto que olhaste incessantemente, mas de repente, flutuante e descrente, paras, porque começas a te perguntar se viste teu rosto. A luta contra o desaparecimento é árdua. Procuras com urgência em todas tuas memórias, porque graças a uma simétrica repetição de experiências sabes que se não te lembras alguns momentos depois de tê-lo olhado esse esquecimento significará os mais desoladores dias de busca. Até que voltes a vê-lo diante do teu e, com renovada esperança, tu o olhes de novo, decidida, desta vez, a olhá-lo realmente, de verdade, o que, e isto também sabes, é impossível para ti, porque é a condição do amor que tens.
(Paris, maio de 1962)
“Palavras”
Espera-se que a chuva e. Espera-se que os ventos venham. Espera-se. Dizem. Por amor ao silêncio dizem míseras palavras. Um dizer forçoso, forçado, um dizer sem saída possível, por amor ao silêncio, por amor à linguagem dos corpos. Eu falava. Em mim a linguagem é sempre pretexto para o silêncio. É minha forma de expressar minha fadiga inexprimível.
Essa ordem maligna deveria ser invertida. Pela primeira vez usar palavras para seduzir quem se ama graças à mediação do silêncio mais puro. Sempre fui a silenciosa. As palavras intercessoras, tanto as ouvi, agora as repito. Quem escolheu amantes em detrimento de amados? Minha orientação mais profunda: a beira do silêncio. Palavras intercessoras, isca de vogais. Esta é agora a minha vida: medir-me, tremer diante de cada voz, tremer as palavras apelando a tudo de nefasto e maldito que ouvi e li sobre formas de sedução.
O fato é que eu contava, analisava, relacionava exemplos forneci dos por amigos comuns e pela literatura. Demonstrava-lhe que a razão estava do meu lado, a razão do amor. Prometia-lhe que me amando um lugar de perfeita justiça lhe seria ível. Isso lhe dizia sem estar eu mesma apaixonada, tendo em mim apenas a vontade de ser amada por ele e não por outro. É tão difícil falar sobre isso. Quando vi seu rosto pela primeira vez, desejei que fosse amor quando se virou para o meu rosto. Queria seus olhos despencando nos meus. É sobre isso que quero falar. De um amor impossível porque não existe amor. História de amor sem amor. Apresso-me. Existe amor. Existe amor da mesma forma que acabei de sair à noite e disse: existe vento. Não é uma história sem amor. Seria melhor falar sobre substitutos.
Existem gestos que me atingem no sexo. Assim: temor e tremor no sexo. Ver seu rosto se demorando por uma fração de segundo, seu rosto parou num tempo incontável, seu rosto, uma parada tão decisiva, como quem desloca a voz e diz não. Aquele poema de Dylan Thomas sobre a mão que assina o papel. Um rosto que dure tanto quanto uma mão escrevendo um nome numa folha de papel. Atingiu-me no sexo. Levitação; içam-me; voo. Um não, por causa desse não tudo é acionado. Tenho que contar em ordem esta desordem. Contar desordenadamente esta estranha ordem de coisas. À medida que não vai acontecendo.
Falo de um poema que se aproxima. Vai-se aproximando enquanto me distancia. Fadiga inquieta; incansavelmente fadiga à medida que a noite — não o poema — se aproxima e estou ao seu lado e nada, nada acontece à medida que a noite se aproxima e a e nada, nada acontece. Apenas uma voz muito distante, uma crença mágica, uma absurda, antiga espera de coisas melhores.
Acabei de lhe dizer não. Escândalo. Transgressão. Disse não, quando há meses espero em agonia e quando começo o gesto, quando o começava... Trêmulo tremor, me fazer mal, me ferir, sede de excesso (pensar alguma vez na importância da sílaba não). (1964)
Sobre a autora e o livro
Alejandra Pizarnik nasceu em Avellaneda, Buenos Aires, em 1936, e é considerada uma das maiores expressões da poesia de seu país no século 20. O primeiro livro de poemas, “La tierra más ajena”, foi lançado em 1955. Depois vieram “La última inocencia”, “Las aventuras perdidas”, “Árvore de Diana”, “Os trabalhos e as noites”, “Extração da pedra da loucura” e “O inferno musical”. Em 1972, aos 36 anos, Pizarnik foi encontrada morta depois de ingerir uma quantidade excessiva de barbitúricos. Na lousa de seu apartamento deixou escrito: “Não quero ir/ nada mais/ que até o fundo”. A Relicário Edições, que publica no Brasil a poesia de Pizarnik, reúne agora a prosa da autora em um só volume, com as narrativas breves e dois livros maiores que permaneciam inéditos até a morte da poeta, “Os perturbados entre lilases” e “A bucaneira de Pernambuco ou Hilda a polígrafa”, mais “A condessa sangrenta” e entrevistas, artigos e resenhas publicados em revistas e em suplementos literários.
“Prosa completa”
• De Alejandra Pizarnik
• Tradução de Nina Rizzi e Paloma Vidal
• Prólogo de Ana Becciú
• Relicário Edições
• 348 páginas
• R$ 105
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