MULHERES SEM LIMITES

Um livro sobre viajar para sumir do mapa e recomeçar

A russa Maria Stepánova conta, em 'Desaparecer', a jornada de uma escritora que muda a rota de uma viagem para experimentar outra vida

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Maria Fernanda Vomero
Especial para o EM

Enquanto viaja da capital do país onde agora vive para um evento literário em uma cidade no exterior, a escritora M. divaga. Aproveita para ordenar os pensamentos, “unir na cabeça duas placas tectônicas descomunais”, tarefa na qual fracassa uma e outra vez. Durante o primeiro trecho da viagem de trem, M. rememora a experiência de ter deixado seu lugar de origem por motivos alheios à sua vontade, escapando da “besta” e da guerra que se iniciara. O conflito bélico do país onde nasceu com o território vizinho levou à emigração de pessoas de ambas as nações. E conterrâneos que antes conviviam pacificamente, a partir daquele momento aram se olhar com “horror e suspeita”.


M., então, se vê diante de um imperativo: algo precisa mudar urgentemente, pois ela já não se reconhece em seu “eu anterior”. Sente-se incapaz de escrever, pois o cotidiano ao qual estava acostumada já não existe e tarefas simples ganharam um peso descomunal. Aos 50 anos, deseja tornar-se radicalmente outra. Talvez modificar a própria vida até deixá-la irreconhecível. Sumir do mapa. Este é o mote do intrigante “Desaparecer”, da russa Maria Stepánova, romance lançado pelo selo Poente da Editora WMF Martins Fontes e traduzido por Irineu Franco Perpétuo.


Da autora, o mesmo selo já havia publicado o portentoso “Em memória da memória”, também com tradução de Perpétuo, uma obra de tons ensaísticos na qual Stepánova vasculha arquivos familiares (e coletivos) para refletir sobre os rastros da história minúscula das gentes comuns. Aliás, nesse livro, a escritora e poeta conta que em 1991, finda a União Soviética, seus pais decidiram emigrar. A autorização da Alemanha só chegou quatro anos mais tarde; eles partiram em 1995, mas naquela oportunidade ela não quis acompanhá-los. “A vida ao meu redor parecia desesperadamente interessante”, escreve.


Décadas mais tarde, porém, quando a Rússia ? sob o governo de Putin, que intuímos ser “a besta” várias vezes mencionada ? intensificou medidas de censura a artistas, jornalistas e intelectuais sobretudo depois da invasão da Ucrânia em 2022, Stepánova foi obrigada a se exilar. “Desaparecer” lida com essas e outras questões apelando à ficção, sem deixar de recorrer, contudo, aqui e ali, ao tom ensaístico e a certas referências autobiográficas. Enquanto a narradora de “Em memória da memória” busca recordar, a de “Desaparecer” tenta esquecer. Ambas constatam, no entanto, que tais processos são menos intencionais do que parecem.


Durante a baldeação na cidade de H., a frágil estabilidade que M. conseguira sustentar com hábitos simples (o sanduíche vegetariano comprado no mesmo local tantas vezes, a mala de viagem arrumada do modo de sempre, o assento ideal garantido antecipadamente etc.) dissolve-se em instantes. Há uma greve ferroviária no país ao qual a escritora se dirige, nenhum trem seguirá até lá. A breve perambulação por H. alimenta em M. a ideia de aproveitar a ocasião para desvanecer. Mas ainda há o compromisso com os organizadores do evento... O que fazer?


Quanto mais perdida M. parece estar, mais “reencontrada” ela se sente. Várias situações inusitadas contribuem para que a protagonista se desconecte de sua identidade original, na qual se sente aprisionada, e exercite ser outra. Nas pitorescas ruas que percorre, ela prova o anonimato: já não é mais uma escritora que vem daquele país tão bélico, instada com frequência a comentar sobre a violência. Não precisa se justificar todo o tempo, seja a si mesma, seja a interlocutores curiosos e preocupados. Pode ser apenas uma mulher casual sentada à mesa de um café, tendo diante de si uma taça de vinho.


Com uma prosa cadenciada e humor sutil, Stepánova conduz uma narrativa na qual cabemos todas e todos. Quem nunca sentiu o impulso, irrefreável talvez, de sumir do próprio cotidiano e reaparecer em outra realidade, diante de perspectivas totalmente diversas? O livro também discute o tenso embate entre criação artística e impotência política. A história se situa em 2023, um ano após o início da ofensiva russa e da guerra, situação que permanece até hoje. Uma pergunta, nas entrelinhas, confronta a protagonista: como escrever quando a língua materna se torna um vetor de destruição?


É possível identificar, em “Desaparecer”, ecos do livro anterior de Stepánova. As agens reflexivas estão permeadas por reminiscências e detalhes aparentemente irrelevantes mas que se revelam bastante significativos. O desejo de desaparecer num e de mágica, como naqueles famigerados truques circenses, implica um desafio maior: domar a própria memória, ressignificando o ado (ou reinventando-o) a fim de abrir novas brechas no presente. Porque não se trata (ainda) de imaginar novos futuros, mas sim de viver em outro hoje. No fundo, M. quer voltar a sentir-se em casa, onde quer que seja. Para isso, ela precisa contar uma nova história, protagonizada por uma personagem ainda desconhecida, a partir do capítulo zero.

Maria Fernanda Vomero é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)

Trecho

“Isto é, claro que era ela mesma, mas também era a besta, ora ela mesma, ora a besta e às vezes notava no rosto ou nos ombros dos interlocutores uma espécie de convulsão, que dizia que a besta era exatamente a primeira coisa que eles viam nela.


Mudar aquilo era aparentemente impossível ? mesmo aqueles que não eram como ela, pessoas tão pequeninas quando olhadas de longe, que de repente saíam ao encontro da besta de mãos nuas. Não era possível entender por quê, ao devorá-las, a besta tornava-se com isso apenas maior, apenas mais forte; e a bravura delas inspirava e dava esperança aos compatriotas até o momento em que os heróis eram devorados com um estalido que os transformava em parte do organismo geral, uma espécie de exemplo didático, quadro vivo, natureza morta, para convencer de que não havia esperança. Acontecia que o único meio de livrar-se da besta era livrar-se de si mesma, ou pelo menos calar-se de uma vez por todas para não dizer por engano algo com a voz dela. E, embora em teoria M. tivesse encontrado o que retrucar a essa ideia simplória, suas mãos e corpo, sem falar da língua, agora calavam-se, como se estivessem plenamente de acordo que não precisavam falar.”

reprodução

“Desaparecer”
• De Maria Stepánova
• Tradução de Irineu Franco Perpétuo
• Poente/ Editora WMF Martins Fontes
• 144 páginas
• R$ 54,90

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