'Esperança': primeira autobiografia de um papa traz a vida de Francisco
Especialistas falam sobre a importância do livro na maneira de consolidar, de forma simples e ível, as principais mensagens transmitidas pelo pontífice
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Siga noPrimeira autobiografia publicada por um papa, Esperança (Selo Fontanar/Companhia das Letras), livro de Francisco, deveria ter sido publicada após sua morte, como era o desejo do religioso. Mas, com o Jubileu de 2025, ano especial para os católicos que geralmente acontece, por tradição, a cada 25 anos, o pontífice mudou de ideia, e a obra foi lançada antes - chegou às livrarias brasileiras no início de fevereiro. Seria coincidência que, pouco tempo após o lançamento, Francisco viria mesmo a falecer. Aos 88 anos, ele morreu na madrugada desta segunda-feira (21/4).
O livro foi estruturado a partir de depoimentos do pontífice ao editor Carlo Musso, que assina como coautor, entre 2019 e 2024. Na parte final da obra, Carlos Musso esclarece que "em um primeiro momento sua autobiografia deveria ser publicada como legado após sua morte". Mas, conforme o editor, tanto o Jubileu como "as exigências do tempo" convenceram o papa "a difundir agora esta preciosa herança".
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Esperança carrega o ineditismo de ser a autobiografia de um papa, algo antes nunca visto. Para especialistas, por outro lado, a importância do livro está na maneira de consolidar, de forma simples e ível, as principais mensagens transmitidas por Francisco em documentos institucionais da Igreja, como encíclicas, exortações e outros textos.
A publicação, que traz experiências vividas pelo religioso, mostra um papa aberto, acolhedor e transparente, em sua faceta mais pessoal, sem pompas ou formalidades excessivas. É a própria vida de Francisco como símbolo de esperança, uma vida como a de todos os demais cristãos.
“Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como o bronze que soa.” Parte da Primeira Epístola aos Coríntios, a frase é uma das três epígrafes escolhidas pelo papa Francisco para abrir a autobiografia. Durante seis anos, o chefe da Igreja Católica trabalhou no livro em que aborda questões cruciais do pontificado e temas como guerras, migração, crise ambiental, políticas sociais, condição das mulheres, sexualidade e desenvolvimento tecnológico, além do futuro da Igreja e das religiões.
Em suas memórias, o papa, nascido em 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires, batizado Jorge Mario Bergoglio, traz revelações e reflexões, ilustradas por muitas fotos. Francisco sempre firmou a sintonia perfeita com o tempo em que viveu. Na introdução, “Tudo nasce para florescer”, ele se apresenta, com delicadeza, fé e espírito coletivo, ao leitor: “O livro da minha vida é o relato de um caminho de esperança que não posso imaginar separado do caminho da minha família, da minha gente, de todo o povo de Deus. É também, em cada página, em cada agem, o livro de quem caminhou junto comigo, de quem veio antes, de quem seguirá", escreveu.
Então, no plural, disse o papa: “Uma autobiografia não é nossa literatura particular, e sim nossa bagagem. E a memória não é apenas o que lembramos, mas aquilo que nos cerca. Não fala apenas do que foi, mas também do que será. A memória é um presente que nunca acaba de ar, como disse um poeta mexicano. Parece ontem, e, no entanto, é amanhã.”
Frutos doentes
No momento em que centenas de pessoas são deportadas dos Estados Unidos, e que o mundo ainda assiste aos conflitos na Ucrânia e à fragilidade do cessar fogo em Israel, a palavra do chefe dos católicos se firmava em cima dos fatos. Junto a isso, ele já falava sobre a necessidade de justiça social e a atenção máxima às mudanças climáticas. “Emigração e guerra são duas faces de uma mesma moeda. Como bem se escreveu, a maior fábrica de migrantes é a guerra. De um modo ou de outro, porque as mudanças climáticas e a pobreza também são, em boa medida, o fruto doente de uma guerra surda que o ser humano declarou: a uma distribuição mais justa dos recursos, à natureza, a seu próprio planeta. O mundo hoje nos parece a cada dia mais elitista, a cada dia mais cruel com os excluídos e os marginalizados.”
Cenários de guerra são criados “por novos e velhos interesses, disparatados planos geopolíticos, avidez por dinheiro e poder”. O papa não se calava. “Hoje, também os planejadores do terror, os organizadores do embate, bem como igualmente os empresários de armamentos esculpiram no coração a mesma frase: ‘E o que me importa?’ Uma frase que polui e distorce todas as coisas. Mesmo o que temos de mais sagrado. Mesmo Deus. Não existe um deus da guerra: quem faz a guerra é o maligno. Deus é paz.”
Francisco alertava para a necessidade de empenhar todos os esforços para pôr fim à corrida armamentista e à preocupante difusão de armas. “As guerras contemporâneas afetam algumas regiões do mundo, mas as armas com que são travadas vêm de outras regiões muito diferentes, aquelas mesmas que depois rejeitam e rechaçam os refugiados gerados por essas armas e esses conflitos.”
Tais teatros da guerra conduziam o autor à infância, aos primeiros atos da existência. “Aprendi o que é a guerra com meu avô, Giovanni, quando criança. Foram seus lábios que me contaram, pela primeira vez, aquelas histórias dolorosas. Ele lutou em Piave (Itália).”
Giovanni Angelo Bergoglio e a mulher, Rosa, deixaram a Itália em 1929, num inverno com temperaturas de até 25 graus abaixo de zero – “Venderam os poucos bens que tinham na Região do Piemonte e chegaram ao porto de Gênova para zarpar no ‘Giulio Cesare’ com uma agem só de ida”. Duas semanas depois, chegaram a Buenos Aires “com um calor úmido beirando os 30 graus”. Foram registrados como “migrantes ultramar”.
Inforgrafia funeral papa Francisco
Melancolia e futebol
Embora dizendo que “nós, irmãos, éramos vivazes”, Francisco confessava uma tendência para a melancolia, a qual sempre foi uma companheira de vida. “Não contínua, claro, mas boa parte da minha alma, um sentimento que me perava e que aprendi a identificar. Muitas vezes, me reconheci nos poemas de Paul Verlaine (1844-1896, poeta francês): 'Os soluços longos dos violinos do outono ferem meu coração'.” Ele contou, na autobiografia, que “às vezes, a melancolia volta, vez ou outra é um lugar onde me vejo e que aprendi a reconhecer”.
A paixão pelo futebol e pelo time argentino San Lorenzo entra em campo no capítulo “Brincando sobre a superfície da Terra”. “Sempre gostei de jogar futebol, e pouco importa se eu não era grande coisa. Em Buenos Aires, os que jogavam como eu eram chamados de ‘pata dura’ – algo como ter dois pés esquerdos. Mas jogava. Muitas vezes, ficava como goleiro, que considero uma ótima posição: ensina a encarar a realidade, a enfrentar os problemas; talvez a gente não saiba bem de onde veio aquela bola, mas de qualquer modo precisa tentar pegá-la. Como acontece na vida.”
O conclave
No livro, o papa narrou sua trajetória religiosa até chegar à eleição para ocupar o trono de São Pedro, no Vaticano, revelando algo muito curioso: como nasceu o nome Francisco. “Quando o meu nome foi pronunciado pela septuagésima vez, explodiu um aplauso, enquanto a leitura dos votos continuava. Não sei quantos foram exatamente no final, não conseguia ouvir mais nada, o barulho encobria a voz do escrutinador. Nesse momento, enquanto os cardeais ainda aplaudiam e o escrutínio seguia, o cardeal Hummes (dom Cláudio Hummes, gaúcho, 1934-2022), que tinha estudado no seminário franciscano de Taquari, no Rio Grande do Sul, levantou-se e veio me abraçar. ‘Não se esqueça dos pobres’, disse-me. Aquela frase me marcou, eu a senti na minha carne. Foi ali que surgiu o nome Francisco.”
E qual o futuro da Igreja? Segundo reforçava Francisco, a Igreja deve crescer na criatividade, na compreensão dos desafios da contemporaneidade, abrir-se ao diálogo, não se isolar no temor. “Uma Igreja fechada e assustada é uma Igreja morta. É preciso ter confiança no Espírito, que é o motor e o guia da Igreja, e faz barulho. Basta pensar no relato do Pentecostes, que foi uma verdadeira algazarra: 'De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam' (At 2,2), e todos começaram a falar em línguas desconhecidas, e saíram. Saíram à rua. Todos fora. Fora das nossas zonas de conforto. Porque só a partir dessa abertura é possível gerar harmonia.”
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