A volta das doenças controladas

Santa Isabel: a história da dor e do preconceito contra os hansenianos

EM reconta, com detalhes, a história da maior colônia de isolamento de hansenianos, em Betim. A estrutura funcionava como um "mini-estado"

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Presente na história da humanidade há milhares de anos, a hanseníase sempre foi tratada, em todos os lugares por onde ou, com muito estigma, preconceito e, sobretudo, sem dignidade para seus portadores, colocados à margem da sociedade. Na primeira metade do século ado, deu-se início a um modelo de tratamento que, essencialmente, perpetuou a segregação dos hansenianos, isolando-os em colônias onde apenas doentes poderiam entrar – e ninguém poderia sair.

A Colônia Santa Isabel, erguida em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, foi o maior espaço do tipo no Brasil. Em seu auge, abrigou quase 4 mil hansenianos. Em um museu construído ali, no prédio da antiga enfermaria, objetos históricos e depoimentos dos pacientes ajudam a preservar as memórias de famílias e pessoas que ainda carregam as marcas desta segregação promovida pelas autoridades de saúde em décadas adas.

As colônias eram, em sua maioria, agrícolas. Minas Gerais recebeu quatro espaços do tipo, nas cidades de Bambuí (Centro-Oeste), em Três Corações (Sul), em Ubá (Mata) e em Betim. Nelas, se desenvolveram verdadeiras sociedades a partir da exclusão, pois os pacientes que garantiam seus próprios sustento, segurança e, até mesmo, saúde – sem médicos, freiras que frequentavam as colônias ensinavam aos hansenianos noções básicas de enfermaria e de medicina.

“A colônia era toda fechada. As pessoas não tinham convívio com outras de fora, então ficavam somente aqui. Eram muitas tarefas. Tínhamos o ao cinema, a um grupo de amigas e aos pavilhões. Eu trabalhei aqui na colônia por muitos anos, inclusive na intendência (istração)”, diz a pedagoga aposentada Joana Darc de Souza Pedra, de 63 anos, que viveu na Colônia Santa Isabel após ser diagnosticada com a doença na adolescência.

 Veja, abaixo, a linha do tempo da doença milenar ao longo dos anos:

A história de toda a família de Joana é marcada pela exclusão promovida pelo poder público. Os pais dela eram hansenianos e se conheceram após serem internados na Santa Isabel, onde tiveram o primeiro dos sete filhos. Contudo, a política dali era de que filhos gerados pelos doentes deveriam ser separados da família para não serem contaminados. Foram construídos dois espaços chamados de “preventórios”, em Mário Campos (Grande BH) e em Belo Horizonte, onde as crianças eram isoladas até os 18 anos.

Ao completarem a maioridade, contudo, os filhos de hansenianos eram orientados a não voltarem à colônia dos pais. Essa política pública de saúde promoveu uma verdadeira alienação parental de milhares de pessoas. Tanto que uma lei estadual de 2018 e outra federal de 2023 estabeleceram o pagamento de indenização aos filhos separados dos pais diagnosticados.

“Uma das maiores violações dos direitos humanos foi essa. A criança já era condenada no ventre, pelas leis brasileiras, pelo judiciário, pelo legislativo e pela sociedade. E essa pessoa era orientada a nunca mais voltar. Vários estão por aí, e outros voltaram somente a partir da década de 1980, quando fecharam esses espaços”, diz o professor de ensino fundamental Cordovil Neves de Souza, de 65, irmão de Joana.

A organização da colônia

A família de Cordovil, de Joana e de os outros cinco irmãos conseguiu se manter unida, pois a mãe e o pai decidiram fugir da Colônia Santa Isabel, pois não aceitavam ser separados da prole. Atitude arriscada, já que a entrada e saída do espaço era raramente autorizada pela istração, e a colônia ava por vigilância frequente. Os responsáveis pela segurança do local eram, justamente, outros internos, num esquema montado para garantir a autossuficiência deste “mini-estado”. Haviam as figuras do delegado, do soldado e do prefeito, todas ocupadas por hansenianos – e os mais desobedientes chegavam a ser punidos em prisões.

A Santa Isabel era, em linhas gerais, dividida em pavilhões, cada um emulando o andamento de uma cidade. A saúde ficava a cargo da enfermaria e do CTI improvisado. Religiosidade era presente numa pequena capela, construída pelos internos, e que vez ou outra recebia algum padre de fora.

O trabalho também fazia parte do tratamento, e os doentes plantavam e colhiam. Nos momentos livres, ava-se o tempo no cinema, no teatro ou nas partidas de futebol, disputadas pelos dois times formados dentro da colônia: o União Esporte Clube e o Minas Esporte Clube – ambos ativos no futebol amador e representantes de toda a comunidade, que deixou de ser colônia agrícola para se tornar um bairro residencial atualmente.

A descrição do funcionamento da colônia tem ares de utopia, mas a realidade é muito mais dura que a teoria. Diversos episódios de escassez de comida ocorreram ao longo das décadas, somados ao sucateamento do espaço, devido à falta de atenção do Estado – o mesmo que, ativamente, excluía essas pessoas da sociedade.

Fora das portões da colônia, a discriminação e o estigma da doença eram violentos, pois, com os tratamentos arcaicos da época, as marcas da hanseníase ficavam pelo corpo de muitos doentes – de forma evidente. Tanto que a chamada polícia sanitária ficava responsável por identificar pessoas com sintomas da enfermidade e, imediatamente, informar as autoridades.

Infâncias comprometidas

Cordovil conta que cresceu, junto da família, no Bairro Citrolândia, colado à Colônia Santa Isabel, pois ali seus pais se estabeleceram após fugirem do isolamento. Ser morador desta região era motivo de discriminação nas redondezas, e quem viesse dali não conseguia trabalho na cidade. O atraso educacional formado pela falta de escolas que lecionassem além da quarta série somava-se ao estigma de ser filho de hanseniano.

“Até a década de 1990, o ônibus de Igarapé não parava aqui perto. Conseguimos, com pressões políticas, fazer parar. Mas, mesmo assim, eles continuaram não parando. O pessoal conta histórias desse período de que, quando chegava um quilômetro antes de Citrolândia, os ageiros fechavam a janela, prendiam a respiração e só soltavam um quilômetro depois”, diz Cordovil.

A ojeriza pelas pessoas com hanseníase era tanta que, segundo conta Cordovil, os ônibus da região que seguiam para a capital paravam num chamado “dispensário”, localizado na Praça Hugo Werneck, na Área Hospitalar, em BH, onde profissionais de saúde e sanitaristas buscavam por pessoas com sintomas da doença entre os ageiros.

Preservação

Mesmo com todo esse medo da sociedade, apenas Joana adquiriu a doença dos pais, enquanto os outros seis irmãos da família nunca apresentaram sintomas. Após o diagnóstico, ela foi internada na colônia, onde viveu na casa de uma tia. O tratamento médico surtiu efeito em pouco tempo, e a enfermidade não deixou nenhuma sequela física – o que não a impediu de sofrer discriminação.

“Preconceito sempre existiu. As pessoas se afastam. Eu me lembro de quando estava na universidade e contei que tinha hanseníase. Somente duas pessoas continuaram a amizade e o convívio comigo, o resto se afastou. Mas, nunca me afetou. Têm pessoas que sofrem abalos, ficam nervosas, impacientes, mas eu mantive minha cabeça erguida”, diz Joana.

Os portões da Colônia Santa Isabel foram finalmente abertos no fim da década de 1980, quando mudou-se a estratégia de tratamento contra a doença. Ainda assim, muitos internos decidiram permanecer, mesmo após receber alta, por medo de serem hostilizados e não se adaptarem à vida fora daquele espaço.

Hoje, a localidade se tornou um bairro residencial, assim como qualquer outro. A memória das décadas de isolamento dos hansenianos dali permanece preservada na cultura do bairro, no esporte, nos prédios e, especialmente, no Centro de Memória da Hanseníase Luiz Verganin. O museu, constituído por artefatos que sobreviveram à abertura da colônia, coleciona depoimentos de ex-internos que vivenciaram, na pele, a negligência do Estado.

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