Mortes na gastronomia: por que nossos chefs estão doentes?
Profissionais da área sucumbem a pressão constante e longas jornadas, que os colocam no limite da fadiga mental e física. Somente este ano, foram cinco mortes
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Siga no“O que está acontecendo com os chefs"> Aline Elias, proprietária do bar e restaurante Santo Boteco, no bairro São Pedro, na região Centro-Sul da capital, no dia 22 deste mês.
Muitas dessas mortes não tiveram as causas divulgadas. No entanto, amigos e colegas de profissão apontam a saúde mental e a falta de qualidade de vida como fatores constantes na rotina dos cozinheiros, categoria marcada por jornadas longas e pressão constante.
A realidade é similar para profissionais que atuam em cozinhas de escolas, hospitais e redes de fast food, onde o ritmo intenso, a cobrança por produtividade e a ausência de pausas adequadas também impactam diretamente o bem-estar físico e emocional.
Atualmente, não existem dados específicos sobre taxas de suicídio na gastronomia no Brasil. No entanto, indicadores globais mostram uma tendência preocupante. Uma pesquisa conduzida pela organização britânica de prevenção ao suicídio R;pple, em agosto de 2024, entrevistou 2.010 trabalhadores do setor de hospitalidade.
Os resultados revelaram que 59% enfrentam dificuldades relacionadas à saúde mental no trabalho. Metade itiu já ter tido pensamentos suicidas, de automutilação ou outros pensamentos autodestrutivos. Entre aqueles que avaliaram seu bem-estar mental como ruim, 66% atribuíam essa condição às exigências do trabalho.
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Um estudo australiano publicado em 2022 revelou que chefs apresentam risco significativamente maior de suicídio em relação a outras profissões, especialmente as mulheres. Na Nova Zelândia, um relatório de 2023 da Umbrella Wellbeing apontou sofrimento mental significativo em quase 10% dos chefs entrevistados, além de altos níveis de fadiga física e emocional.
A pressão da cozinha também é retratada em obras audiovisuais como Chef (2014), Sem Reservas (2007), Pegando Fogo (2015) e, mais recentemente, The Bear (O Urso), que mostra a história de Carmy, chef renomado que herda o restaurante do irmão após seu suicídio. No enredo, o protagonista lida com ansiedade, estresse pós-traumático e o desafio de reerguer um negócio falido.
O psiquiatra, epidemiologista e professor do Departamento Medicina Preventiva e Social pela UFMG Helian Nunes observa que a ficção não exagera. O docente tem uma iniciativa que une filmes e séries com estudos na área da psicologia. “Esses filmes ilustram bem a rotina de competição, alta performance e o desafio de conciliar tudo isso com a vida pessoal e familiar, bem como as consequências desse estilo de vida”.
Os reality shows também marcam presença, mostrando como não há lugar para simplicidade, calmaria e erros. Alguns deles são amplamente conhecidos, como o Masterchef, que foi importado para o Brasil, Hell's Kitchen, com o aborrecido chef Gordon Ramsay e o Cake Boss na área da confeitaria.
Abusos normalizados
Mas a resposta para essas mortes não está apenas no sofrimento mental individual, mas em uma cultura de abusos e desvalorização naturalizada nas cozinhas. Dayana Alves Pereira, 37, chef confeiteira e proprietária da Confeitaria Alzucar, relembra o tempo em que liderava uma equipe de 14 pessoas, com sua maioria sendo homens, em uma famosa confeitaria da capital mineira.
Embora a experiência tenha sido enriquecedora, ela relata a resistência da equipe em ser liderada por uma mulher jovem, episódios de assédio moral, falta de insumos, má gestão e desrespeito aos direitos trabalhistas. “Era comum os proprietários chamarem atenção na frente de todos, sumirem com a folha de ponto, não pagarem vale transporte integral. O problema sempre recaía sobre o funcionário.” Com o tempo, Dayana ou a sofrer crises de ansiedade, a chorar durante o trajeto para casa, e se demitiu em 2018, abrindo seu próprio negócio.
Do outro lado da história está Yves Saliba, 33, chef e dono de três restaurantes em BH: Pe Lui, focada em cozinha contemporânea; Cucina di Pastaio, restaurante de massas; e o Odoyá Cozinha, que oferece uma experiência costeira.
Ele começou na cozinha da lanchonete da mãe e ou por restaurantes com estrela Michelin na Itália, onde vivenciou jornadas de 16 horas diárias, agressões físicas, humilhações e um ambiente de trabalho tóxico.
“A gente idolatrava essa pressão. Quanto mais a gente sofria, melhor parecia ser para o nosso crescimento”, relata e destaca que esse modelo de trabalho é muito característico da cozinha sa que carrega um estilo militar e técnicas culinárias precisas.
Ao voltar para o Brasil, um ano depois, Yves replicou o que aprendeu por pelo menos dois anos. “Eu continuei trabalhando por mais de 12 horas e se alguém errasse, era frigideira voando, gritaria e intimidação. Hoje vejo que isso me fazia mal também.” Tanta pressão fez o cozinheiro expandir as lanchonetes. No total eram nove lanchonetes e um restaurante, porém a pandemia mudou tudo.
Com a COVID-19, Yves declarou falência e entendeu que precisava mudar. “Durante esses anos eu engordei 40kg, reflexo desse estilo de vida. E entendi que não é porque aprendi apanhando que precisava ensinar batendo. Hoje, na minha cozinha, não pode nem palavrão.”
Ele relata que muitos cozinheiros usam substâncias como válvula de escape, como drogas, álcool, cigarro e café. “A automutilação é comum. Nossa geração foi ensinada a sofrer calada, pois era um processo que ia valer a pena.”
O psiquiatra Helian relata que no ambulatório é frequente o consumo de bebidas alcoólicas como uma fuga, porém a mesma substância piora a saúde mental do indivíduo. “O consumo de álcool nesse meio é alto, quase como uma automedicação. Mas piora a ansiedade, a depressão, e ainda é romantizado e glamourizado. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarou que não há consumo seguro. Nesses casos precisamos enxergar os sinais antes do adoecimento avançar”.
O docente cita que a somatização desses problemas pode gerar atrasos, sendo que antes o profissional era pontual; erros constantes, irritabilidade, entristecimento, impaciência, impulsividade, entre outros sintomas.
O peso da imagem
Além da cultura de abusos, Yves aponta um outro agravante, a romantização das cozinhas nas redes sociais. “A nova geração entra com um deslumbramento, como se tudo fosse como nos realities shows, mas, ao mesmo tempo, ela não tolera abusos. Isso é positivo, mas há um choque de realidade.” Além disso, ele cita que muitos profissionais se comparam com o padrão irreal criado na internet, gerando frustração.
Eberton Borodinas Quirino, 30, chef e dono do Maria - Cozinha Brasileira e do Una - Jantar Secreto, também sente os reflexos das redes sociais. Ele fez um desabafo após a morte de Aline Elias, criticando o comportamento dos clientes. “O conceito do Maria é casa de vó. Esses dias um funcionário foi destratado porque serviu o café em copo lagoinha, sendo que esta é exatamente a proposta da casa.”
Para ele, críticas construtivas são bem-vindas, mas há uma falta de empatia pós-pandemia, principalmente vinda de influenciadores e de clientes com “síndrome de MasterChef”. “Um erro vira post. Essas pessoas esquecem que têm um pai e uma mãe de família ali. Um prato errado não precisa virar uma destruição pública.”
E, apesar do amor pelo ofício, Eberton lembra que a cozinha também é um negócio. “Amo o que faço, trabalhar com a minha equipe, mas no final preciso colocar a cabeça no travesseiro e saber que paguei as contas e meus funcionários. Quando me mudei para BH, pagavam R$ 2.000 para um chef liderar oito pessoas. Isso está mudando, mas ainda existe desvalorização.”
Ausência de regulamentação
A formalização do ofício de cozinheiro(a) ou gastrônomo(a) tem sido objeto de discussão legislativa há pelo menos duas décadas, mas enfrenta forte resistência política e econômica.
Diversos projetos já foram apresentados no Congresso Nacional, entre eles:
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PL 425/2003: propunha a criação do Conselho Federal e Conselhos Regionais de Gastronomia. Status: Rejeitado
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PLC 74/2011: visava regulamentar a profissão de cozinheiro. Status: Rejeitado
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PL 2079/2011: propunha a regulamentação da atividade de gastrólogo. Status: Rejeitado
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PL 3736/2019: apresentado pelo deputado Isnaldo Bulhões, trata da regulamentação da atividade de gastrólogo. Status: Em tramitação
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PL 1020/2022: de autoria do senador Carlos Fávaro (PSD-MT), atual ministro da Agricultura e Pecuária, propõe a regulamentação tanto da profissão de cozinheiro quanto de gastrônomo. Status: Em tramitação
A sequência de propostas rejeitadas mostra a falta de prioridade para o tema e destaca o quanto ainda há a se avançar em termos de valorização profissional e proteção legal da categoria.
A regulamentação é defendida por especialistas e trabalhadores como essencial por outros motivos, como:
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Qualificação profissional específica: garantir que quem manipula alimentos esteja devidamente treinado é uma questão de saúde pública.
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Interesse coletivo: como ocorre com outras profissões regulamentadas, a formalização favorece a prestação de serviços mais seguros e confiáveis à população.
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Proteção legal: o fornecimento de alimentos impróprios é crime (Lei nº 8.137/90, Art. 7º, IX). Ter profissionais capacitados pode reduzir riscos e responsabilizações.
A informalidade e a baixa qualificação também afetam diretamente a sobrevivência dos negócios. Segundo dados do Sebrae, a taxa de mortalidade das empresas no setor de serviços é de 26,6% nos primeiros cinco anos, sendo uma das mais altas entre os setores econômicos. Em Minas Gerais, estado com forte presença da gastronomia, a taxa de mortalidade empresarial atinge 30%, a maior do país.
Por outro lado, a regulamentação, se não vier acompanhada de incentivos e políticas públicas, pode pressionar ainda mais os pequenos empresários. O custo com pessoal é um dos maiores entraves operacionais, sobretudo para bares, restaurantes e padarias. Durante o debate sobre a escala 6x1, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) alertou para a redução da jornada de trabalho, sem contrapartidas, que pode elevar os preços dos cardápios em até 15%.
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A opinião é rebatida por profissionais da área e também por empresários. Um exemplo é da arquiteta e padeira Renata Rocha Pereira, do Albertina Pães, que estruturou seu negócio desde o início com escalas humanas: cinco dias de trabalho para dois de descanso. “Se defendo processos naturais e lentos para o pão, seria contraditório ter uma equipe exausta.” Ela afirma que seus clientes nem sempre entendem essa dinâmica, mas que em sua maioria, compreendem esse ritmo. “O produto é caro, mas é porque a mão de obra é bem paga e respeitada. Não dá para ter qualidade com uma equipe doente.”
A política de escala também foi adotada em dois dos três restaurantes de Yves. “Hoje, ninguém dobra nos meus restaurantes. Trabalhamos 40 horas semanais. Se você oferece condições justas, você encontra bons profissionais. O problema não é a mão de obra, é a estrutura.”
Consciência coletiva
Com 20 anos de profissão e atualmente morando em Nova York, a cozinheira Samira Lyrio sintetiza a visão de muitos colegas. “Todas as pessoas que trabalham na cozinha, sejam novas ou velhas, trabalham com exaustão. O desgaste é físico, emocional. A diferença entre essa e outras profissões é que aqui o gatilho é mais forte, principalmente à noite. Não dá para colocar tudo nas costas do indivíduo.”
Samira defende que a transformação precisa ser coletiva, reorganizar o setor, criar políticas de e, combater o alcoolismo e a informalidade. “Não é todo mundo que aguenta. Todo mundo trabalha demais, ganha mal, sofre com as mazelas de um setor mal regulamentado. Mas precisamos parar de tratar como tragédias pessoais. É estrutural.”
Para além dos problemas estruturais e das crises individuais, há um componente que muitas vezes a despercebido: o sentido do ato de cozinhar. O executivo na área de Felicidade e Bem-Estar Rodrigo Aquino aponta que o trabalho na gastronomia costuma nascer de um desejo profundo de cuidado com o outro. “A pessoa que escolhe ser cozinheiro quer nutrir, quer criar experiências. Quer que os clientes viajem sem sair do lugar, que vivam memórias positivas”, afirma.
Segundo ele, a culinária reúne diversos elementos associados ao florescimento humano, como o engajamento, o significado e a conexão com os outros. “Quando você cozinha para alguém, você se engaja, entra em estado de flow, perde a noção do tempo. Há o resgate de memórias, da receita da mãe ou do pai, e o sentimento de realização ao ver alguém saboreando o prato.”
No entanto, quando o ambiente é tóxico e competitivo, todo esse processo, que poderia ser prazeroso, se transforma. “Se o cozinheiro está num espaço sem reconhecimento, sob pressão e sem apoio, ele não vive essas emoções positivas. O sonho vira frustração.”
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