A professora Rossaly Beatriz Chioquetta é autora do livro "Leitura e cárcere - (entre) linhas e grades, o leitor preso e a remição de pena” lançado no ano ado. A obra faz uma reflexão sobre a desigualdade social, o funcionamento dos sistemas de segurança e de justiça, condições dos espaços de privação de liberdade e justificativas da pena.
O livro narra também a experiência da autora durante entrevistas com presos no projeto de extensão de leitura que coordenou, por cinco anos, no curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc Xanxerê). A experiência não deixou dúvidas: “Mesmo em condições tão hostis, eles conseguiram ter fruição, curtiram aquela leitura”, diz a professora, que aponta ainda efeitos extramuros da experiência, já que muitos detentos aram a presentear os filhos com livros.
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Como funcionou o projeto de extensão?
Trabalhei durante muitos anos no curso de Direito, com Língua Portuguesa. Nesse período, coordenei um projeto de extensão intitulado “Direito e Cárcere, diminuição da pena pela leitura”. Os alunos de Direito liam a mesma obra de literatura que os presos do Presídio Regional de Xanxerê. Depois, eles iam ao presídio fazer mediação dessa leitura, amparados pela lei, e emitiam um formulário de que o preso havia lido o livro. Esse formulário ia para o Poder Judiciário para que houvesse a efetividade da remição da pena. Como eu coordenava esse projeto desde 2015, quando ingressei no doutorado, em 2017, em uma conversa comentei com meu orientador e ele considerou muito importante o projeto para a tese.
Quais os critérios para a pesquisa?
Entrevistei os presos que mais leram nesse projeto de extensão da universidade, entre os anos de 2016 e 2018. Nessa unidade prisional só tem presos homens. Faço análise das falas deles. A linguística é a ciência da linguagem. A teoria que ancora minha pesquisa é a análise do discurso. São as irrupções inconscientes, deslizes. Mas fazendo essa pesquisa, acabaram emergindo várias questões.
Pode citar algumas?
Fui investigar quem eram os presos que se encontram atrás das grades do sistema prisional do Brasil. As fatias de dados estatísticos do sistema carcerário brasileiro se confirmaram entre os meus entrevistados. Uma sobrerrepresentação de presos negros, um baixíssimo nível de escolaridade. O que mais havia estudado tinha o 7° ano do Ensino Fundamental, nenhum com Ensino Fundamental completo. Eles comentaram, espontaneamente, que seriam usuários de drogas e também sobre vulnerabilidade social. Não tem como mascarar a realidade. Imagino que qualquer unidade prisional que tivesse sido feita a pesquisa iria trazer a confirmação desses dados.
Como se deu o processo de escrita?
Quando eu comecei a pesquisa, li e reli o livro “Vigiar e punir”, de Michel Foucault. E, a partir disso, fiquei pensando quem é o preso encarcerado no Brasil. Primeiro busquei entender quem era o preso e depois, com os dados estatísticos, acabei mapeando os detentos entrevistados no presídio regional. Eu faço parte da Pastoral Carcerária também. Frequento presídios.
Ao final, o que ficou da experiência do projeto?
Essa pesquisa foi dolorosa para mim. Foi difícil escrever. Muitas vezes, ia escrever e chorava. Ficava cansada e pensava na condição dos presos. Ele está em uma cela pequena com outros homens. Não havia biblioteca na unidade prisional. É uma condição hostil e precária. Foi doloroso neste sentido, mas continuo indo ao cárcere toda semana porque acredito na presença da pastoral. Pode ser uma presença silenciosa, mas estamos ali. Alguém da sociedade adentrou no intramuros da prisão. O que ficou dessa experiência, para mim, é que o cárcere é um lugar muito sombrio. É absolutamente marginalizado. Há um imaginário social de que o preso é um monstro. Eles cometeram infrações e estão lá pagando, mas, muitas vezes, o que a gente vê é que aquele que roubou um quilo de carne, uma barra de chocolate, um pote de margarina – o chamado furto famélico – fica atrás das grades. Agora, aquele que roubou milhões não. A Justiça dá uma sensação de injustiça, infelizmente.
A senhora acredita que a leitura pode ajudar, além da remição, na ressocialização dos presos?
Eu acredito na potência da literatura. As entrevistas trouxeram isso. Mesmo em condições tão hostis, eles conseguiram ter fruição, curtiram aquela leitura. O ideal seria que não tivéssemos pessoas presas, mas tendo, vamos criar condições para que esta pessoa que está contida atrás das grades hoje, amanhã possa estar comigo na sociedade. Vamos criar condições para que ela volte restaurada. A pesquisa também mostra que elas não tiveram o à educação, não frequentaram as escolas. Que as instituições públicas se preocupem com essa parcela de um milhão de encarcerados no Brasil, que, daqui a pouco, estará conosco na sociedade.
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Quais as mudanças nos detentos que participaram do projeto?
O vocabulário deles aumenta. Depois que aram a ler, os presentes que os filhos ganham são livros. Eles sentiram a potência da leitura e querem proporcionar isso também para os filhos. A literatura provoca reflexões.
Alguma história marcou a senhora?
Duas entrevistas me marcaram muito. Um dos presos comentou que estava lendo “irável mundo novo”, do Aldous Huxley (1894/1963) e disse que se viu em um dos personagens porque a mãe dele sofria espancamento do pai, quando ele era pequeno. Disse que não aguentava mais ver a mãe espancada. Um dia, foi defender a mãe do espancamento e o pai atirou nele, com 9 anos. Ele me mostrou a perna com a cicatriz do tiro. Outro preso contou que gostava tanto de ler que às 22h, quando as luzes da unidade prisional são desligadas, ele lia com a luz de uma TV ligada. Enquanto os outros presos assistiam à TV e ele usava aquela luz tênue para fazer a leitura do livro.