TRABALHO DOMÉSTICO

Empregada doméstica: direitos jogados para debaixo do tapete

Como a PEC das Domésticas não incluiu garantias para diaristas, profissionais relatam cotidiano de longas jornadas e baixa remuneração

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Dez anos após a promulgação da PEC das Domésticas e quase o mesmo tempo da entrada em vigor da Lei Complementar 150, a informalidade segue sendo a regra, não a exceção, no trabalho doméstico no Brasil. Mais de 8 milhões de pessoas exercem essa atividade — majoritariamente mulheres, negras, de baixa renda —, mas apenas um quarto delas têm carteira assinada. Os números revelam o abismo entre o que está na lei e o que se vive na prática.

Em Belo Horizonte, a situação é relativamente melhor do que no restante do país: 38,13% das trabalhadoras domésticas atuam na informalidade, conforme dados reados pela delegacia sindical do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho em Minas Gerais ao Estado de Minas. O índice está bem abaixo da média nacional (48,69%) e distante das altas taxas observadas em capitais como São Luís (69,92%) e Belém (69,56%).

“A gente teve sim avanço, mas não teve a equiparação e nem a aplicação”, afirma Chirlene dos Santos Brito, secretária de formação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Para ela, o que se vê hoje no Brasil é a persistência de um "trabalho escravo atualizado", no qual mulheres continuam sendo submetidas a longas jornadas, baixa remuneração e múltiplas formas de violência —psicológica, moral, física e até sexual. “A falta de aplicação dessas leis e da fiscalização faz com que às vezes se encontre um trabalho trabalho precário, precarizado, que não é mais análogo, ele é um trabalho escravo atualizado”, afirma.

A falta de fiscalização, somada à resistência cultural em reconhecer o trabalho doméstico como profissão, aprofunda o quadro de precarização do trabalho doméstico e a naturalização de abusos. “Ainda existe uma cultura de que o trabalho doméstico não tem valor, que ele é só para servir, que não gera lucro para o país”, aponta Chirlene.

A pandemia de Covid-19 evidenciou essa fragilidade com brutalidade. A primeira morte oficialmente registrada pela doença no Brasil foi de uma trabalhadora doméstica, e, para muitas outras, aquele período significou perda de emprego, instabilidade e medo. Profissionais mensalistas foram demitidas ou coagidas a aceitar novos vínculos como diaristas — precarizando ainda mais sua condição. “O primeiro direito negado para nós foi esse do direito de ir e vir”, afirma Chirlene.

“Uberização” do serviço

Se antes a informalidade era mascarada por acordos verbais e promessas vagas, hoje ela vem travestida de empreendedorismo e tecnologia, avaliam as representantes da categoria ouvidas pelo Estado de Minas. A adesão forçada de trabalhadoras ao regime de Microempreendedoras Individuais (MEI) e o avanço dos aplicativos de serviços domésticos criaram novas formas de exploração.

“Essas modalidades que eles criam para que formalizem, mas que é como uma legalização da informalidade”, alerta Chirlene. O uso do MEI, que deveria servir para pequenos negócios autônomos, tem sido “desvirtuado” por empregadores que, na prática, contratam sem assumir os encargos trabalhistas. “Perdem o direito ao INSS, ao seguro-desemprego, às férias, ao 13º salário”, denuncia a secretária da Fenatrad.

Nos aplicativos, o problema é ainda mais complexo. Plataformas que prometem facilidade e autonomia vendem, na verdade, um modelo baseado na rotatividade, na ausência de vínculo e na insegurança. A cada serviço, uma nova negociação, um novo deslocamento, muitas vezes para bairros distantes e em condições degradantes. “Essas mulheres precisam pagar para se cadastrar, não têm garantia de serem chamadas de novo, e vivem numa lógica de substituição constante”, explica Renata Aline Guimarães Oliveira, presidente da Associação Tereza de Benguela, entidade batizada em homenagem à líder quilombola que resistiu à escravidão por mais de duas décadas no século XVIII.

Ela relata casos de profissionais deslocadas para trabalhar em casas sem o à água, sem alimentação adequada, e com jornadas que extrapolam os limites legais. A rotatividade imposta pela própria dinâmica dos aplicativos, que não enviam as profissionais mais de duas vezes para a mesma casa para não gerar vínculo empregatício, pode levar, no futuro, a um cenário de escassez, avalia Renata. “Vai chegar um momento que não vai ter casa suficiente para esse tanto de mulher que vai estar dentro desse serviço”, disse. Ela ainda denuncia a prática de algumas plataformas que permitem o cliente avaliar a aparência da trabalhadora. “Como pedir isso em um país racista? Uma mulher de trança pode ser mal avaliada por um cliente racista e, por isso, não conseguir mais serviço. Isso é uma violação de direitos humanos”, analisa.

Diaristas de fora da PEC

Para Renata Aline Guimarães Oliveira, a exclusão de parte expressiva das trabalhadoras domésticas da PEC das Domésticas foi um golpe inesperado. Militante pelos direitos da categoria, ela lembra a frustração das mulheres que atuavam como diaristas ao perceberem que não estavam contempladas pela nova legislação. “ou a PEC das domésticas e, para nossa surpresa, nós ficamos para fora”, afirma. A medida abrangeu apenas aquelas que trabalhavam ao menos três vezes por semana em uma mesma casa, deixando de fora quem atuava um ou dois dias, como era o caso da própria Renata.

Essa diferenciação, que parece técnica à primeira vista, tem efeitos profundos na vida das trabalhadoras. Segundo Renata, ignorar as diaristas é desconsiderar a essência do trabalho doméstico como um todo. Ela defende que qualquer pessoa que entre em um domicílio para executar funções ligadas à manutenção da casa ou ao cuidado de pessoas deveria ser reconhecida legalmente como trabalhadora doméstica, independentemente da frequência com que presta o serviço. “Se eu não sou registrada, se eu não tenho uma carteira, eu não existo perante o Ministério do Trabalho. A chance de eu cair em um trabalho análogo à escravidão é muito maior”, alerta.

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Renata também questiona a diferença de tratamento oferecida às trabalhadoras domésticas em relação a outras categorias. O próprio seguro-desemprego, quando existe, é mais limitado e menos abrangente. Essa diferenciação torna mais barato e vantajoso para o empregador contratar uma doméstica do que um trabalhador com vínculo celetista tradicional. Ela argumenta que o reconhecimento do trabalho doméstico deveria vir também como uma reparação histórica às violências herdadas da escravidão, das quais as mulheres negras e pobres foram, e continuam sendo, as principais vítimas. 

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