
Racismo e gordofobia marcam presença de filha de diplomata no Flipoços
Camila Panizzi Luz atacou o escritor Wesley Barbosa e um livreiro durante festival literário em Poços de Caldas (MG)
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“Eu já pesei 93kg, mas enfim (...) me perdoa, por favor. Não consigo mais voltar à feira”. Essa é a declaração de Camila Panizzi Luz ao escritor Wesley Barbosa, após ser racista com ele durante uma mesa no Festival Literário Internacional de Poços de Caldas. Sim, você não leu errado. Ela usou como desculpa o fato de já ter pesado 93kg para ter sido racista.
Mas ela não foi só racista. Ela foi gordofóbica. E tornou a ser. E foi racista novamente. E segue sendo. O caso começou na última terça-feira e segue repercutindo na cidade. A direção do evento cancelou a participação da escritora em outros debates e recolheu os livros da mesma 48 horas depois do ocorrido e se posicionou apenas sobre o caso de racismo, omitindo a gordofobia.
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Entenda o caso
Na última terça-feira (29/4), Camila, que é filha de Francisco Carlos Soares Luz, embaixador da Bolívia, segundo o Ministério das Relações Exteriores, participava de uma mesa ao lado da mãe, Ivana Panizzi, sobre “Raízes e Asas: Literatura e Artes Sem Fronteiras - O Encontro de Mãe e Filha na Terra Natal”, quando chamou o escritor Wesley Barbosa para subir ao palco e falar do trabalho dele com literatura marginal, no estande “Neomarginais”, que ele alugou junto com um grupo de outros escritores para comercializar os livros independentes no evento.
Assim que ele subiu ao palco, ela indagou: “Como eu faço para ser uma neomarginal"é só ser você mesma”. E ela: “Pensa, Camila Luz, neomarginal, e eu nunca fui presa”. A fala foi registrada em vídeo e postada nas redes sociais, o que repercutiu e fez com que a autora trancasse a conta, até então aberta, no Instagram.
Wesley contou que se sentiu bastante mal com a situação. “Ela me chamou e eu fui, porque estou aqui para vender meus livros. Enxerguei como um espaço e fui humilhado. Me senti indignado, atacado. Eu sofri racismo. Ela me associou a um criminoso. Eu não sou criminoso. Eu sou um escritor, um autor independente, ao contrário dela, que é filha de um embaixador, minha mãe é faxineira. Em casa, quase ninguém lia. Eu sou o único leitor em casa e é tão difícil a gente publicar livros, ter espaço nos eventos, na imprensa e eu faço esse trabalho de formiguinha. Sair de São Paulo, vir para Minas Gerais e ouvir esse tipo de coisa me deixou muito mal mesmo”, contou.
É importante dizer que a literatura marginal, tal qual conhecemos a partir da obra de Wesley Barbosa, teve início nos anos 2000, com as publicações de Ferréz na revista Caros Amigos e a efervescência de saraus e movimentos periféricos como Sarau do Binho, Cooperifa, Suburbano Convicto, até chegar nos dias de hoje, com campeonatos de poesia falada (Slam) por todo o país, sendo o Brasil, inclusive, uma referência no estilo.
"A literatura mudou a minha vida, me tirou da miséria absoluta para uma situação mais confortável. Ouvir isso me deixa triste, eu não gostaria de aparecer por isso, mas pela qualidade da minha literatura”, completou Barbosa.
Não apenas racista, mas gordofóbica.
Voltando ao caso, não satisfeita em ser publicamente racista, Camila saiu dali e foi a um estande de um livreiro, que prefere não se identificar. Ali, ela teria aberto uma marmita com comida em cima de uma bicicleta com livros. Ao ser advertida que poderia sujar os livros, ela respondeu ao livreiro: "saia daqui, seu gordo imundo. Você tem o p*u pequeno, seu gordo”, entre outras palavras de baixo calão, numa tentativa de humilhá-lo. A cena aconteceu em frente aos trabalhadores da livraria e público ante no evento, constrangendo-o.
De imediato, o livreiro procurou a diretora e curadora do evento, Gisele Corrêa Ferreira, que disse lamentar, mas justificou que a escritora “estaria em surto psicótico” e que, por ser amiga da mãe dela, manteria a mesa que ocorreria ainda esta semana.
Nenhum pedido de desculpa. Nenhuma palavra de conforto. Nenhuma nota de repúdio. Nenhuma atitude. Apenas um “lamento muito” e vida que segue.
Vocês estão acompanhando comigo? Um livreiro foi publicamente achincalhado por uma autora convidada do evento e a resposta da organização é: "veja bem, temos que manter a mesa da mãe dela". A mesa só foi noticiada como cancelada na noite de quinta-feira (1º/5), 48h depois do ocorrido, em razão da visibilidade do caso, que virou notícia na quarta-feira (30) no Terra, em furo jornalístico do Marcos Zibordi.
Aqui, vale uma breve apresentação de Camila, que é poços-caldense, mas vive em Portugal. No instagram, com pouco mais de 5 mil seguidores, se apresenta como internacionalista, marketeira, exploradora e autora. No Flipoços, lançou dois livros sobre liderança feminina e mindset.
Nunca houve um pedido de desculpas: de Peppa Pig aos 20 anos do evento
O pedido de desculpas não chegou. Nem a Wesley, nem ao livreiro vítima de gordofobia. Nem a mim, vítima da mesma gordofobia no mesmo festival em 2017. Aliás, a gordofobia sequer é lida como uma opressão, né? Já falei muito sobre isso aqui. E o racismo - que é crime - só é “assumido” porque fica muito feio para a imagem de uma festa que se pretende democrática, aparecer assim na mídia, não é mesmo?
Em 2021, escrevi o texto “Aquela porca gorda: qual a sua forma de desumanizar mulheres gordas">elatei o que me ocorreu no Flipoços ao ser comparada com a Peppa Pig. A responsável pela fala que me traumatizou por anos chora para pessoas conhecidas e diz que “não sabe o que aconteceu com a nossa amizade”. Nunca falou comigo. Nunca me pediu desculpas. Nunca assumiu a própria gordofobia. E eu pergunto: que amizade é essa que você compara sua “amiga” a uma porca cor de rosa de um desenho infantil porque ela é uma pessoa gorda?
Em uma nota que demorou 48 horas para ser publicada no Instagram oficial do evento, lê-se que “o evento se compromete a uma convocatória de escuta para fortalecer a curadoria” e, mais adiante “reafirmamos que não compactuamos com nenhum tipo de discurso discriminatório ou ofensivo, e seguiremos atentos para preservar o respeito e a escuta mútua em todas as atividades do evento”.
Tenho vontade de dizer: "belo discurso, pena que eu te conheço". Como se dará essa “convocatória de escuta curatorial”, já que, ao Terra, a curadora do evento afirmou que “minha curadoria é impecável, tá!”. Se é impecável, onde fica a curadoria do compadrio em abrir espaço a uma filha de uma amiga que sequer se conhece e fortalecer esse local de fala por mais de duas horas para que ela pudesse ser livremente racista e gordofóbica sem qualquer tipo de repreensão? Que apoio é esse que demora duas horas para chegar num país que mata uma pessoa preta a cada 12 minutos segundo o Atlas da Violência no Brasil publicado em 2024.
Se o festival não compactua com nenhum tipo de discurso discriminatório ou ofensivo, por que se calou diante da gordofobia sofrida pelo livreiro? Por que a curadora nunca reconheceu que foi gordofóbica comigo ao me chamar de Peppa Pig?
De um lado, o evento que completa 20 anos, que atua na democratização e o ao livro e leitura por acontecer em praça pública, sem cobrança de ingresso e aberto a todas as pessoas, peca no compadrio e em trazer mesas que, ano após ano, de forma recorrente, ferem os direitos humanos e são resolvidas com queda de canal no Youtube, nota de repúdio e a mesma meia dúzia de pessoas engajadas da cidade discutindo nas redes sociais e se lamentando.
O mesmo evento que traz neste ano Itamar Viera Junior, Milly Lacombe, Roberta Martinelli, Dia Nobre, Isabella de Andrade e tem programações como as do Sesc, com Cristino Wapichana, Mafuane, Carol Dall Farra, Natasha Felix, Gleicyele Guató, entre outros, também caminha na contramão das discussões contracoloniais do mundo e homenageia Portugal, faz mesas sobre Dom Pedro II, traz mediadores que são favoráveis à venda de órgãos e, numa tentativa de se dizer “apartidário”, se alinha rapidamente a práticas que ferem os direitos humanos e o nosso desejo dito incansável de produzir literatura.
Vejam vocês, Wesley Barbosa é um escritor cuja caminhada eu conheci há mais de 10 anos, nas andanças e pesquisas sobre literatura marginal (sim, sou especialista no tema e fiz disso minha pesquisa de vida há muito tempo, sigo fazendo). Com sete livros publicados, entre eles o Viela Ensanguentada, que será lançado no próximo mês na França, Wesley também publica, na Barraco Editorial, nomes como Marcelo Ariel e Pedro Cardoso, por exemplo e, hoje, vive exclusivamente da venda dos livros e da circulação nos principais festivais do país.
Sobre a ida a França, Wesley divulgou, em sua rede social, o link da vaquinha que está promovendo, para ajudar nos custos da viagem. Ao publicar, recebeu uma mensagem de Camila, dizendo: “ai ai, viu. Não vou dar mais palco não. Espero mesmo que agora pedindo dinheiro você consiga crescer”.
Sim, meus caros. Essa é uma das convidadas dos 20 anos do festival. Diferentemente da nota enviada à EPTV, afiliada da Globo local, em que diz ser vítima de “acusações públicas que alegam condutas racistas com base em recortes de mensagens privadas e fora de contexto”, em mensagens enviadas ao autor, ela segue não apenas importunando-o, mas perseguindo-o em suas postagens, tentando constrangê-lo mais uma vez e, ocupando, de forma majestosa, o papel da “branca salvadora”” conforme a nota: “(...) é importante ressaltar que Camila tem plena consciência de seus privilégios e já demonstrou inúmeras vezes sua disposição em abrir espaço para outras vozes - inclusive, cedendo seu próprio protagonismo em eventos, feiras e espaços profissionais, em respeito e reconhecimento à desigualdade histórica que permeia nossa sociedade”.
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Daqui, dos 20 anos de história do evento, estive presente em todas as edições, tendo sido, por 10 anos, curadora do Encontro de Arte da Periferia, por onde aram autores e rappers como Mel Duarte, Roberta Estrela D’Alva, Luiza Romão, Tom Grito, Rapadura XC, Dexter, Eduardo Kobra, Poetas Ambulantes, Lívia Cruz, Lunna Rabetti, Elizandra Souza, Rap Plus Size, Caco Pontes, Sacolinha, Sérgio Vaz, Ferréz, entre outros, mas, me retirei em 2019, quando, não apenas a gordofobia direta se tornou insustentável, como o racismo e classismo indireto aos participantes, por serem pessoas periféricas.
Sou imensamente grata ao evento por todas as possibilidades que me foram oferecidas - e bem aproveitadas. Por ser um evento literário na cidade, que eu defendo de forma bastante aguerrida, inclusive na reivindicação de recursos. Penso ser absurdo que um evento de 20 anos precise sofrer tanto para conseguir apoio financeiro e se manter. Que precise brigar tanto com o poder público para se erguer em praça pública.
Sou absolutamente fã do trabalho feito com crianças não apenas da cidade, mas de toda a região, que tem a oportunidade de terem contato com os livros, leitura e autores de forma tão direta. E nisso, viva a democracia do Flipoços, que, em outros anos, conseguiu, a partir de vales livro, distribuir milhares de exemplares às crianças e adolescentes. Afirmo, com força, que esse é o Brasil que eu quero.
Mas, na outra ponta, estou exausta de disputar espaço com Deltan Dellagnol, Joel Pinheiro e outros fascistas autodeclarados, que compõe, inclusive, a curadoria do evento, que, de impecável, não tem nada. Penso que não somente eu, mas vários coletivos e escritores da cidade, que é um celeiro literário, cheio de talentos e movimentos que se firmam há muitos anos, nem sempre fruto das políticas públicas e os, mas da garra que de permanecer escrevendo, publicando e levando poesia às praças, a exemplo que a Mostra Integrada de Artes (MIA) fez ano ado, com uma apresentação do Apupú de Natasha Felix na praça em frente às Thermas Antônio Carlos, ou com o podcast Rabiscos, que recebeu Leonardo Piana e Maria Melo e fez suas edições na rua, de maneira absolutamente democrática.
Há algum tempo, tenho tentando entender e praticar essa literatura que não se dá apenas no desejo de disputar esse espaço hegemônico que o Flipoços se tornou e, honestamente, não queria gastar minha energia e caracteres tendo que reviver casos de racismo e gordofobia, mas nessa efeméride, não consigo mais silenciar, olhar para o lado e pensar no que pode me acontecer.
Que tipo de privilégio vamos perder se dissermos o que nos atravessa de forma tão violenta? Que tipo de silenciamento é pior do que o racismo e a gordofobia? Que tipo de não-convite dói mais que os olhares de nojo cruzados com pessoas como a Camila? Que tipo de boicote dói mais do que ser chamado de criminoso no microfone com a alegação que é uma oferta de espaço?
E não é como se estivéssemos pedindo muita coisa. Só existir sem sermos agredidos já seria o suficiente.
Caso chega à Câmara Municipal de Poços de Caldas
No início da tarde desta sexta-feira (2), o escritor Wesley Barbosa foi procurado pelo vereador Tiago Braz (Rede Sustentabilidade), informando-o que ao lado dos também vereadores Diney Lenon (PT) e Tiago Mafra (PT), está sendo elaborada uma Moção de Repúdio ao caso de racismo, bem como uma Moção de Solidariedade ao escritor.
“Temos tentando, ao máximo, levar todas as demandas de igualdade racial e étnica para serem discutidas e cobradas na Câmara. Estamos num movimento em que toda e qualquer ação desta merece nossa atenção e cobrança. Quero entender como posso contribuir, para pensarmos como podemos encaminhar”, relatou o parlamentar.
As moções serão protocoladas na próxima segunda-feira (5) e encaminhadas à votação na sessão ordinária de terça-feira (6).
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.