
Enzo, o fracasso humaniza mais que o sucesso
O mundo já tem coach demais. Falta mesmo é gente com dúvida no olhar e silêncio nos ombros
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Meu amigo, Enzo,
Escrevo-te novamente, munido de um autêntico sentimento de amizade — o que, nos dias de hoje, já é quase um ato revolucionário. Acredito que, pelo tempo de nossa convivência, posso te chamar de um buscador. Por mais que eu não concorde com algumas das suas escolhas — e, veja bem, não tenho absolutamente nada a ver com isso —, na condição de alguém que se importa contigo, ouso dizer: sua busca é legítima, sim, mas anda vasculhando o lixão do lado errado.
Isso acontece muito, Enzo. A gente procura em um lugar aquilo que, na verdade, perdeu em outro. Aí, toda a jornada vira uma corrida em círculos — tipo aqueles hamsters de academia que você tanto ira: correm enlouquecidamente rumo a lugar nenhum, mas com fone bluetooth no ouvido e copinho térmico na mão.
Talvez por isso você tenha me relatado, há algum tempo, esse vácuo emocional que vem te assombrando o peito. E, olha, isso é mais comum do que parece. Tem gente procurando no shopping o que perdeu na infância. Tem adulto tentando encontrar no trabalho o colo que nunca recebeu em casa. São efeitos colaterais da vida acelerada: substituímos o sentido pelo desempenho, a ética pela métrica e o bom encontro no boteco pela meta trimestral.
Busque no lugar certo, Enzo. Não há nenhuma garantia de que vá encontrar alguma coisa. Mas, ao menos, sua busca será mais honesta. E isso, no final das contas, já constrói uma espécie de solo fértil dentro da alma. Porque procurar no lugar certo é o primeiro critério de uma vida minimamente decente. E a dignidade existencial, meu caro, é um dos poucos antídotos contra a mediocridade estufada do nosso tempo.
Mas vamos ao ponto.
Há tempos você anda entorpecido com essa ideia de sucesso — como se fosse um evangelho de alta performance. Me assustei com a sua última frase: “Chegar onde ninguém chegou exige fazer o que ninguém fez.” Achei que você já tinha largado essa droga disfarçada de sabedoria. Mas não. Lá está você de novo: viciado em cursos online, palestras com gurus do Vale do Silício, formações em "design de consciência" com ênfase em inteligência artificial e, claro, aquela trilha de montanha cercada de machos gritando frases de impacto como se estivessem expulsando demônios da autoestima.
Não quero te ofender, Enzo. Só quero te alertar: você está regredindo, meu amigo. Está voltando para um berçário de ideias mal formuladas, embalado por slogans motivacionais e algoritmos de conveniência. E como diria Umberto Eco, “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. O problema é que alguns deles agora têm empresas, mentorias e seguidores.
Veja bem: a imbecilidade tem uma capacidade de reprodução que não encontramos na originalidade da sabedoria. Por isso que a idiotice brota em qualquer lugar, como erva-daninha. O idiota não nasceu: foi incubado num e-book de autoajuda. Não teve infância, teve mentoria de crescimento pessoal. Aprendeu a andar com um curso de sete dias chamado "Seus primeiros os rumo à vitória". Falou sua primeira palavra aos dois anos: networking. E nunca mais calou a boca.
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A fé do imbecil é inabalável — não em Deus, que foi demitido por não bater as metas do trimestre —, mas nos algoritmos. Todo imbecil acredita que a inteligência artificial é a nova Arca de Noé, e que ele, claro, será um dos escolhidos a embarcar, com sua ring light e sua caneca motivacional escrita: “bora pra cima”.
Cuidado com esse pessoal, Enzo. Eles nunca estão sozinhos. Idiotas se replicam como Gremlins molhados: basta uma live prometendo riqueza em três os para brotarem mais vinte. Reúnem-se em eventos com nomes heroicos: Titanium Master Mind, Jornada do Herói Interior, Imersão do Alfa Quântico.
Mas deixa eu te dizer uma coisa que tenho aprendido com a vida: o fracasso humaniza bem mais que o sucesso.
Sim, Enzo. O fracasso, essa coisa torta, às vezes melancólica e constrangedora, nos aproxima do chão. Ele arranca nossas fantasias com a sutileza de uma topada no escuro. Já o sucesso, na maioria das vezes, funciona como um tipo de anestesia social: nos faz acreditar que somos especiais, quando na verdade só estávamos na fila certa, com a roupa certa, dizendo as palavras certas para as pessoas erradas.
O fracasso é o que nos impede de virar os Rinocerontes do teatro de Ionesco. Você conhece essa peça? Lá, uma cidade inteira vai sendo tomada por pessoas que, uma a uma, se transformam em rinocerontes — símbolos de uma massa acrítica que abandona a individualidade para aderir ao rebanho triunfante da estupidez. Só o protagonista resiste, justamente porque fracassa em se adaptar. O fracasso, nesse sentido, desmonta o mito da meritocracia e nos devolve o olhar frágil de quem não tem certeza de nada — o que, para um bom existencialista, é o início da sabedoria.
Enzo, meu caro, a conquista empapuça. Ela nos dá a ilusão de que somos alguma coisa além de um amontoado de carne sonhando com estabilidade emocional. O fracasso, ao contrário, nos coloca no devido lugar: não como heróis de jornada alguma, mas como tropeços ambulantes que, por alguma razão misteriosa, ainda insistem em levantar da cama e alimentar um gato que não retribui o carinho. Essa insistência é que é bonita. O fracassado, ao menos, aprendeu que não controla nada — e, por isso, talvez, seja o único que ainda pode amar sem cálculo, rir sem produzir conteúdo e chorar sem postar.
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Fracassar nem sempre é perder, Enzo. Falhar diante de ditadores é ganhar humanidade, naufragar à frente de projetos exploratórios é resistir, recusar-se a performar para agradar investidores de alma é um ato de insubordinação estética. Sucumbir, nesses casos, é afirmar um limite ético. É o grito silencioso de quem ainda se recusa a transformar a própria existência num produto minimamente vendável. Quem fracassa, às vezes, é só alguém que não quis vencer nas regras dos outros. E convenhamos, Enzo: nesse tabuleiro, ser eliminado pode ser o único jeito de não virar peça.
O fracasso, muitas vezes, é sinal de dignidade. E lembre-se: você sempre terá a companhia da filosofia, de bons livros, dos camaradinhas que te respeitam em casa e da Academia de Copos e Letras do Boteco do Chicão. Tudo isso sem precisar fazer dancinha em rede social ou repetir asneiras com voz impostada. O mundo já tem coach demais. Falta mesmo é gente com dúvida no olhar e silêncio nos ombros.
Seu amigo, humano.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.