Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

Renato de Faria: Todas as formas de opressão deixam marcas

"A escravidão deve ser lembrada, discutida, estudada, combatida em suas consequências atuais. A ditadura também. Uma coisa não precisa anular a outra."

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Será que o Brasil é a terra onde até o sofrimento vira disputa de campeonato? Por que 22 anos de ditadura militar parecem incomodar mais do que 388 anos de escravidão? Uma excelente questão para aqueles que gostam de transformar tragédias históricas em gráficos de relevância moral.


O argumento, ao que parece, pretende denunciar uma seletividade histórica: por que falamos tanto de uma ditadura que durou duas décadas e deixamos de lado quase quatro séculos de trabalho forçado, violência sexual, tortura e desumanização? Aparentemente, existe uma demanda por proporcionalidade. Se sofremos 388 anos com a escravidão, então a ditadura só pode começar a entrar no debate daqui a uns 366 anos.

 


O problema desse raciocínio é que ele ignora que a história não se escreve em números absolutos, mas naquilo que ainda pulsa, ainda sangra e se impõe sobre o presente. Nesse caso, as duas questões convivem de forma concomitante. Ditadura e escravidão não são eventos de tabela de Excel, onde um tem que ser mais significativo do que o outro por conta do tempo de duração. A escravidão foi um sistema que, infelizmente, moldou estruturalmente a sociedade brasileira, e seus efeitos estão por toda parte, seja na desigualdade racial, seja no racismo estrutural. A ditadura militar, por sua vez, é uma ferida política ainda aberta, com muitos de seus agentes vivos, suas consequências institucionais visíveis e, pasmem, até saudosos do regime marchando por aí. São debates que coexistem, porque a história não tem fila de espera.

 


Por que algumas pessoas se preocupam tanto com a ditadura e não falam da escravidão? Uma questão legítima, sem dúvida. O problema é quando essa crítica se torna um convite à omissão seletiva. Se a preocupação com a ditadura é excessiva porque a escravidão foi pior, então, por coerência, também deveríamos criticar quem denuncia o racismo atual sem antes ar pela inquisição na Idade Média. Afinal, temos que respeitar a cronologia do sofrimento.


Em jogo, o rosto de Walter Salles. O cineasta, que parece ter sido convocado como símbolo do Brasil branco e abastado, serve como exemplo visual da herança dos opressores. Uma escolha curiosa, pois, se o objetivo é falar de racismo e desigualdade, por que não apontar para algo mais estrutural do que um rosto específico? O perigo desse tipo de argumento é cair na armadilha da essencialização: reduzir um indivíduo à sua ancestralidade, como se a culpa histórica estivesse embutida no formato do nariz ou na tonalidade da pele. É um raciocínio que flerta perigosamente com o mesmo tipo de pensamento racial que tentamos criticar.

 


Curiosamente, essa tentativa de traçar uma relação direta entre ancestralidade e culpa histórica nos lembra um certo pensador do século XIX, Cesare Lombroso. O criminologista italiano acreditava que características físicas poderiam determinar a propensão de alguém ao crime, como se certos traços faciais fossem evidências inquestionáveis de uma índole corrompida. Aplicar esse tipo de raciocínio ao debate racial é perigosamente semelhante à velha pseudociência lombrosiana, que reduzia indivíduos a um determinismo biológico e ignorava toda a complexidade social, histórica e cultural que molda um ser humano. Se condenamos Lombroso por suas ideias equivocadas, deveríamos ter o mesmo cuidado ao sugerir que uma simples feição pode carregar, por si só, toda a carga de um ado colonial.Uma abordagem que só reforça essencialismos vazios e afasta qualquer debate sério sobre desigualdade e justiça histórica.


A escravidão deve ser lembrada, discutida, estudada, combatida em suas consequências atuais. A ditadura também. Uma coisa não precisa anular a outra. A indignação não é um recurso finito, como se preocupar com a tortura dos anos 60 impedisse alguém de lutar contra o racismo hoje. O erro não está em falar da ditadura, mas em achar que precisamos ranquear tragédias para que uma seja reconhecida. Isso não é um campeonato. Não há medalha de ouro para o pior dos horrores. O que há, isso sim, é a necessidade de compreender que todas as formas de opressão deixam marcas – e nossa obrigação não é decidir qual delas foi "pior", mas sim garantir que nenhuma delas se repita.

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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