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Bebês reborn: judicialização do absurdo e a insanidade jurídica

Quando o delírio busca guarida no Direito: o risco de transformar o Judiciário em palco para fantasias e likes

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Por Ana Flávia Sales*

Nos últimos tempos, o Brasil tem se deparado com situações inusitadas envolvendo os chamados bebês reborn – bonecas hiper-realistas que imitam bebês humanos. Em episódios que chamaram a atenção da imprensa e da opinião pública, algumas pessoas chegaram a procurar hospitais, inclusive da rede pública, para solicitar atendimento médico a essas bonecas, alegando sintomas como febre ou mal-estar.

A princípio, pode parecer apenas uma anedota curiosa, mas a recorrência desses casos acende um sinal de alerta sobre os limites entre o acolhimento emocional e a racionalidade institucional. O mais preocupante, contudo, é que já há relatos de pessoas cogitando acionar o Judiciário para viabilizar atendimentos ou mesmo regulamentar questões como guarda e convivência com os reborns. Soma-se a isso o uso dessas situações como palco para autopromoção nas redes sociais, numa tentativa evidente de chamar atenção, conquistar seguidores e viralizar conteúdos absurdos.

Essa realidade revela um fenômeno que merece ser enfrentado com a seriedade que exige: a patologização da relação afetiva com objetos inanimados e a deturpação dos espaços públicos de saúde e justiça. Bebês reborn não são seres vivos, não possuem direitos, tampouco sentem dor. São bonecas – por mais realistas que sejam. E qualquer tentativa de conferir-lhes personalidade jurídica ou prioridade assistencial deve ser, com todo respeito, tratada como um indício de desequilíbrio psíquico, não como pauta de políticas públicas.

A banalização do Judiciário

A Constituição brasileira de 1988 consagra o o à justiça como um direito fundamental (artigo 5º, XXXV). Mas isso não significa que o Judiciário esteja à disposição para atender a toda e qualquer pretensão desprovida de razoabilidade. Não se trata de elitizar o o à justiça, mas de proteger sua função constitucional: resolver controvérsias reais, humanas e relevantes para a coletividade.

Quando se procura atendimento hospitalar para um bebê reborn – seja em prontos-socorros, ambulatórios ou até mesmo em unidades com especialidades pediátricas – está-se desviando a atenção de um sistema já sobrecarregado para uma demanda absolutamente infundada. Ainda mais preocupante é a notícia de que algumas pessoas cogitam judicializar essas situações, pleiteando, por exemplo, o direito de atendimento médico, guarda ou convivência em relação à boneca. Essas iniciativas, mesmo que ainda não formalizadas em ações, representam um desrespeito à população que realmente depende dos serviços públicos de saúde e justiça, além de evidenciar um alarmante esvaziamento do bom senso institucional.

O cenário se agrava quando se observa que, em alguns casos, esse movimento já avança para o campo judicial. Há relatos de pessoas que efetivamente ingressaram com pedidos de guarda compartilhada e pensão alimentícia envolvendo bebês reborn, numa tentativa de conferir a objetos inanimados o status de sujeitos de direito. Aqui, não há meio-termo: ou estamos diante de um quadro grave de insanidade mental, que demanda acolhimento clínico urgente, ou lidamos com indivíduos que apenas querem "causar" e aparecer nas redes sociais, transformando o Judiciário em palco de exibição pessoal e banalizando sua função mais nobre.

Saúde mental em alerta

Mais grave que a tentativa de instrumentalização do Judiciário é o que ela revela: um evidente colapso no campo da saúde mental. Em muitos casos, a relação com os reborns pode estar vinculada a perdas gestacionais, lutos mal elaborados ou quadros clínicos graves como o transtorno factício, que requerem acolhimento psicológico e psiquiátrico – e não legitimação institucional.

É preciso afirmar com clareza: buscar atendimento médico ou pleitear judicialmente guarda ou pensão para um boneco é sintoma de adoecimento, não de autonomia. A resposta social, estatal e jurídica deve ser voltada ao cuidado com quem sofre – não à legitimação da fantasia como direito. Ao acolher esses pleitos como se fossem jurídicos, estamos ratificando o delírio, não oferecendo cura.

Do sintoma à estratégia: a busca por engajamento

É necessário, também, fazer uma crítica direta àqueles que se utilizam desse tipo de situação para viralizar. Muitas das pessoas que aparecem em vídeos carregando reborns em hospitais ou propondo ações judiciais fazem isso com o claro objetivo de gerar repercussão nas redes sociais. O que está em jogo não é justiça, tampouco dor real – mas audiência, monetização e "likes".

Esse tipo de espetáculo prejudica a credibilidade do Judiciário e despreza as lutas legítimas por justiça. Quando se prioriza o engajamento em detrimento da racionalidade, abre-se espaço para um ativismo irresponsável e para o esvaziamento ético das instituições.

E os advogados?

Diante de tamanha distorção da realidade, é inevitável lançar um olhar crítico sobre o papel da advocacia nesse processo. Afinal, quem redige, assina e judicializa ações pleiteando direitos para um objeto inanimado? Seria o caso de apuração ética por parte da OAB?

A advocacia não pode ser cúmplice de práticas que transformam o processo judicial em um circo. O Código de Ética da OAB prevê que o advogado deve recusar causas manifestamente infundadas ou temerárias. A atuação profissional não deve servir como selo de autenticidade para devaneios, muito menos como alavanca para a autopromoção de terceiros.

Judicializar fantasias não é prestar um serviço – é contribuir para o descrédito do sistema de justiça.

Direito, não delírio!

Do ponto de vista jurídico, aceitar tais pedidos – ou mesmo itir sua análise processual – é um risco perigoso. Confere-se, ainda que indiretamente, um status de pessoa jurídica ou de sujeito de direitos a um objeto, criando precedentes que abrem margem para outros tipos de petições igualmente surreais: pedidos de guarda, registro civil, matrícula em creche e por aí vai.

O Judiciário precisa manter-se firme diante da pressão midiática e do populismo digital. Decisões não devem ser guiadas por trending topics ou pelo número de seguidores, mas por critérios técnicos, racionais e comprometidos com o bem coletivo.

Considerações finais

Estamos diante de uma linha tênue entre o acolhimento de quem sofre e a validação de delírios midiáticos. Quando a justiça se vê provocada a decidir se um boneco tem direito a vaga em hospital público, pensão ou guarda, estamos diante de um sintoma social grave: o esvaziamento da razão.

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O Estado precisa, sim, oferecer e às pessoas que utilizam reborns como forma de enfrentamento ao luto, trauma ou solidão. Mas essa resposta deve vir da saúde mental, não dos tribunais. O Judiciário não pode – e não deve – ser cúmplice da distorção da realidade em nome do entretenimento, da desinformação ou do desequilíbrio não tratado.

Cuidar é acolher, mas também é impor limites. E o limite entre o direito e o delírio precisa ser urgentemente reafirmado.

*Ana Flávia Sales – Advogada, Mestre e Professora de Direito Processual Civil

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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